quarta-feira, 28 de abril de 2010

MANOEL PAULO NUNES FALA SOBRE INCÊNDIOS DOS ANOS 40

Manoel Paulo Nunes, então presidente do Conselho Estadual de Cultura, em depoimento ao jornalista Toni Rodrigues fala sobre:


1 - LEÔNIDAS MELO

* “Nós vamos falar de uma época em que eu era adolescente, mas já me interessava em participar dos acontecimentos, principalmente dos acontecimentos políticos, porque a minha geração foi uma geração bastante preocupada com o problema político. Vivíamos o final da ditadura de Getúlio (Vargas), 1942, 1943, e doutor Leônidas (Melo), apesar de ser uma pessoa de conduta irretocável, ele era um homem de vida privada e de vida pública sem defeitos, era um homem correto, de vida limpa, mas numa ditadura tudo pode ocorrer.”

* “No próprio governo dele houve um ato pelo qual quase ele vai destituído da função, que foi a aposentadoria dos desembargadores Simplício de Souza Mendes, Arimathéa Tito e Esmaragdo de Freitas, depois eleito senador. Então, neste período de ditadura, tudo era possível ocorrer. Ele (Leônidas) trouxe para cá um oficial chamado Evilásio Vilanova a quem deu carta branca para fazer a estruturação dos serviços de segurança, não só da Polícia Civil, como também da Polícia Militar, que era chamada de ‘Força Policial’. Ele reformou o Quartel do Comando Geral de modo a alterar a planta primitiva do prédio, deixando a fachada desigual. A Polícia Civil ele instalou onde atualmente funciona a Secretaria de Segurança do Estado. Ao lado disso, Evilásio era uma pessoa de formação fascista. Isto o harmonizava com o clima de ditadura em que se vivia.”

2 - CULPA DE EVILÁSIO VILANOVA

* “Eu acredito, tenho a convicção, sobre os incêndios, de que o autor dessa ignomínia foi o chefe de polícia Evilásio Vilanova. Ele era uma figura sinistra, era um homem perverso, foi comprovado em vários inquéritos, que adotou práticas de atrocidade contra a população de Teresina, principalmente os pobres, que eram duramente castigados para apontar a falsa autoria dos incêndios. Tenho a certeza plena de que ele (Vilanova) foi o autor destes incêndios, apesar de que ele se defendia acusando outra pessoa.”

* “Vilanova residia em Brasília quando eu ali morava também. Através de um meu parente que era delegado da Polícia Federal e que também se dava com ele, soube que ele atribuía esse fato ao senador José Cândido Ferraz. Era uma forma de defender-se de uma acusação grave que houve contra ele. Mas o que há de mais estranho é que depois da saída de Vilanova os incêndios continuaram, durante a interventoria de Vitorino Corrêa e Dario Coêlho. Paira um certo mistério em relação a esse fato, da continuidade dos incêndios.”

* “Houve acusações a várias outras pessoas que foram envolvidas no processo, como o posteriormente senador José Cândido Ferraz, que adquiriu uma grande popularidade nessa fase. Foi ele quem fez as primeiras denúncias sobre o fato.”

* "Essa convicção se formou pela fama que detinha o comandante de ser uma pessoa autoritária e pelo que depois se apurou nos inquéritos que foram feitos. Houve atrocidades que chegaram ao ponto de inutilizar pessoas. Luiz Enfermeiro, por exemplo, que foi espancado barbaramente para confessar o que a polícia queria, a ponto de ser mutilado. Minha convicção formou-se daí. Este fato contribuiu para impopularizar tremendamente o governo Lêonidas Melo. Impopularizando Leônidas, Vilanova esperava assumir o poder. Era coronel do Exército, naturalmente tinha suas relações na área federal. Isso é o que muita gente supõe, não apenas eu."

* "Em seu livro 'Trechos do Meu Caminho', doutor Leônidas fala sobre praticamente tudo o que aconteceu no período, primeiro como governador constitucional, eleito pela Assembléia, depois como interventor federal, indicado pelo presidente Vargas. Ele, entretanto, superficializa a abordagem da questão dos incêndios. Não apenas isso. Ele superficializa muita coisa neste livro. Falo do doutor Leônidas com muita simpatia, porque ele foi médico da minha família, inclusive foi médico da minha mãe. Minha família residia em Regeneração. Na época, minha mãe tinha tuberculose e era assistida por um grande médico de Amarante, doutor Francisco Ayres, que era compadre de meu pai. Então, meu pai a trouxe para Teresina a fim de ouvir a palavra do doutor Leônidas, nascendo daí um relacionamento extremamente saudável. Meu pai foi eleito prefeito constitucional, apoiando o governo Landri Sales, e quando veio o golpe de Estado de 37 foi designado prefeito de Regeneração. Então, havia uma afinidade muito grande entre eles. Do ponto de vista de honestidade e manuseio do dinheiro público, doutor Leônidas foi irrepreensível. Não há uma acusação de desonestidade no governo dele."

3 – A CONSTRUÇÃO DO ARQUIVO PÚBLICO

* "Leônidas fez uma coisa interantíssima em relação ao Arquivo Público do Estado, apenas para citar um exemplo. Os serviços de saúde na época eram muito precários. O atendimento era feito pela Santa Casa de Misericórdia, um casarão sem nenhum recurso para atender as demandas. Ele construiu um hospital moderno, um dos mais modernos do país à época, o 'Getúlio Vargas'. Agora é que foi alterado, sucessivamente, completamente desfigurado, e hoje é uma casa quase que inadministrável. Pois bem... o governo construiu e houve uma sobra de material muito grande. Não havia o edifício do Arquivo Público, construído logo depois da construção do Hospital. O interventor perguntou ao doutor Cícero Ferraz de Sousa Martins, que era engenheiro e construtor do HGV, figura humana singularíssima, gostava de Mozart, de Bethoven, do escritor Marcel Proust, autor de 'Em busca do tempo perdido', um dos maiores romances de todos os tempos. Uma figura muito honesta. Então, Leônidas perguntou a ele: 'doutor Cícero, e esse material aí, daria pra construir o Arquivo Público e a Biblioteca da cidade, porque eu tenho o terreno mas não tenho recursos'. A biblioteca e o arquivo eram acomodados em prédios particulares alugados ao governo. Cícero Ferraz respondeu: 'dá, com um pequeno aumento de material, dá para construir'. E com essa sobra foi construído o Arquivo Público, a Biblioteca (hoje está na antiga Faculdade de Direito) e o Museu Histórico (hoje no antigo Palácio da Justiça)."

* "Ele cometeu erros políticos terríveis, como a aposentadoria compulsória dos desembargadores para garantir a indicação do seu irmão, Eurípedes de Castro Melo. Por conta desse episódio, ele quase foi destituído da Interventoria. Não caiu porque o general Dutra era ministro da Guerra e muito amigo dele. Além disso, podemos mencionar o fato de ter tolerado na Chefia de Polícia o coronel Evilásio. Acredito até que ele tivesse receio de que a saída do Evilásio pudesse complicar a sua vida política. Ele tinha receio de enfrentar Vilanova. Havia indícios fortíssimos da participação do coronel nos incêndios. O Estado Novo era comandado por militares. Getúlio fazia o que os militares queriam."

4 – TERESINA NOS ANOS 40

* "Era uma cidade pequena, que não tinha os serviços essenciais, ainda com muitas casas de palha, por isso ocorreram os incêndios. Dizem que a preocupação era fazer com que as pessoas construíssem casas de telha. Isso afetou principalmente a população mais pobre. Tanto que Teresina é até hoje, do ponto de vista político, uma cidade oposicionista. Na eleição de 1945, o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato da oposição, perdeu em praticamente todo o país e ganhou apenas em três capitais, uma das quais Teresina. Pelo sofrimento imposto na época, a população teresinense passou a nutrir um sentimento de repulsa a todo e qualquer governo, porque o governo sobrevive na memória coletiva como algo ruim, danoso, que impõe sofrimento e morte."

* "A vida era muito simples. A vida social da cidade se fazia em torno das praças Pedro II e Rio Branco e dos cinemas. Em torno dos cines Rex e do Theatro 4 de Setembro, na Pedro II, e do Olympia, na Rio Branco. Havia também um cinema popular, o Royal, pertencente ao Sr. Emílio Ommatti. Os políticos e intelectuais se reuniam em dois cafés: o Bar Carvalho e o Café Avenida, ambos na praça Rio Branco, além do Clube dos Diários, onde se fazia o encontro da melhor sociedade."

AUTORIZADA REPRODUÇÃO MEDIANTE CITAÇÃO DA FONTE

domingo, 25 de abril de 2010

AS MÃOS INVISÍVEIS DA TRAGÉDIA (INCÊNDIOS CONSOMEM CASEBRES EM TERESINA)



Agenor fala ao jornalista Toni Rodrigues, em Teresina, em 2006
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Estamos em 1943. Desde 1939, Teresina é atormentada por incêndios que ocorrem com freqüência e intensidade cada vez maiores. Os sinistros têm hora para acontecer -- mas acontecem principalmente entre dez horas e meio-dia, quando o calor é mais intenso e ajuda as chamas a cumprirem sua trajetória de devastação.

Súbito, tocam os sinos da Igreja de São Benedito. Gritos de aflição e desespero podem ser ouvidos a quilômetros. A fumaça negra encobre a cidade, como uma redoma de desgraça espalhada pelo vento de agosto, mês do desgosto. As labaredas devoram dezenas -- e pouco depois, centenas -- de casebres. O bairro Piçarra está em chamas, que não tardam a lamber também o Cajueiro, para além do Barrocão, empurradas por mãos invisíveis.

A Mesopotâmia Nordestina é, na verdade, um cinturão de fogo. Centenas de famílias pranteiam suas coisinhas poucas e suas casinhas miseráveis, sem nada em que se apegar. A iminência da tragédia constante salta aos olhos. A qualquer momento, um novo incêndio. Por toda a cidade, sem-teto se abrigam sob árvores, disseminando a atmosfera de indigência de uma época de ruptura, em que o poder empregou todos os meios para criar um novo homem e uma nova sociedade -- sobre as cinzas dos antigos; uma sociedade em que não haveria lugar para os frágeis, em que somente os “bravos e fortes” haveriam de sobreviver.

Eram dias terríveis, em que a cidade finalmente começava a perder sua inocência. A capital conta com cerca de oitenta mil habitantes. Levantamento realizado pelo Governo do Estado mostra que há quatro mil casas de alvenaria contra 12.700 de palha. Estas casas rudimentares fazem parte do cenário de Teresina desde os seus primórdios. José Antonio Saraiva, o fundador, instalou a primeira sede do Executivo Provincial num barracão de palha situado no Largo da Bandeira. A abundante floresta de babaçuais às margens do Parnaíba forneceu a matéria-prima para tais construções, acentuadas pelas ondas migratórias do final do século 19 e princípio do século 20. A migração explodiu a partir dos anos 20 com João Luiz Ferreira no poder. Político de rara projeção, engenheiro civil e consciente da necessidade de ligar Teresina a outros centros do país, iniciou o processo de construção de estradas de rodagem. Antes, eram apenas as veredas estreitas, ao longo das quais aglutinavam-se bandos de malfazejos à espera dos viajantes desavisados

Em relatório datado de 1942 e encaminhado ao presidente Getúlio Vargas, o governador Leônidas Melo informa que “fato que teve alguma repercussão e merece por isso referência foi a situação da nossa capital durante os meses de agosto e outubro, duramente castigada por repetidos incêndios que consumiam casas de palha da população pobre dos subúrbios”. O interventor acrescenta que realmente algumas dezenas de famílias pobres ficaram então sem teto por alguns momentos. “Todavia, o amparo e a assistência que lhes proporcionou o governo do Estado serviu muito para minorar o sofrimento dessas vítimas”, complementa Leônidas Melo. “Assim, foi facilitada a reconstrução imediata das casas, dispensando os impostos e taxas correspondentes, fornecidas gratuitamente telhas para cobertura e finalmente organizadas sob o patrocínio do Estado uma comissão para estudar e proporcionar auxílios indispensáveis às vítimas dos abomináveis atentados.”

Segundo o interventor, empreendeu-se notável esforço na repressão aos incendiários. “Toda a Guarda Civil foi utilizada sem descanso, assim como os agentes de Polícia Civil, grande contingente da Força Policial e até elementos do 25 B/C, cuja colaboração foi preciosa e eficiente”, diz. “A partir de outubro, dadas as providências adotadas, difícil se tornava o prosseguimento das atividades dos incendiários. Assim é que, em novembro, já não se registravam incêndios e apenas algumas tentativas frustradas.” Infelizmente, a correspondência do governador abusou da retórica. Os incêndios prosseguem, cada vez mais terríveis, afetando a pobreza e desabrigando milhares. Teresina é um grande paiol. Em pouco tempo, percebeu que a resolução do problema não dependia apenas de boa vontade ou de força de expressão. Era preciso agir energicamente no enfrentamento da crise -- e dos seus causadores.

OS PORÕES EMERGEM

E assim se passaram sessenta anos, desde que o capitão-médico da Polícia Militar Agenor Barbosa de Almeida recebeu, do governador Leônidas de Castro Melo, a arriscada missão de desvendar os segredos dos porões do Estado Novo no Piauí, personificado pelo próprio Leônidas. Mas o poder, de fato, era exercido por outra autoridade -- o temido Evilásio Gonçalves Vilanova, coronel do Exército, comandante da Polícia Militar e secretário de Segurança do Estado, um homem de gestos delicados e aspecto agradável; no entanto, possuidor de um caráter frio e sanguinário.

Querem alguns que a verdade permaneça envolta no manto do mistério e que a responsabilidade pelos traumáticos incêndios ocorridos em Teresina nos anos quarenta tenham, ainda nos dias de hoje, autoria desconhecida. O governador ofereceu contribuição decisiva para que esse conceito se mantenha até agora, porque ao mesmo tempo em que buscava a verdade para si ele a negou para, ou pelo menos tentou negar, para todo o restante da sociedade piauiense.

Falamos com ele pela primeira vez por telefone. Foi em dezembro de 2005. Aos 98 anos de idade, o médico Agenor Barbosa de Almeida reside no Rio de Janeiro desde a década de 60. Ele se mudou para a outrora Cidade Maravilhosa depois de fracassar na tentativa de ser vice-governador do Estado. Antes, fora prefeito de Teresina, derrotando em 1955 o esquema do então prefeito João Olympio de Melo. Sua eleição foi o reconhecimento pelos serviços prestados como médico numa cidade em que ainda é precária a condição de saúde da maioria da população -- e como cidadão, pela coragem em desvendar um sinistro e poderoso esquema de tortura e morte nos porões do Estado Novo no Piauí.

"O governador Leônidas me chamou em palácio e me pediu que reunisse uma Junta Médica para investigar as denúncias de tortura nas dependências do quartel da Polícia Militar", relembra Agenor Barbosa de Almeida, por telefone, na véspera do Natal de 2005. "A cidade estava apavorada pela escalada do terror, que já fizera inúmeros cadáveres entre a parcela mais pobre da população. Era preciso ter muito cuidado, me disse o governador, porque o coronel Evilásio Gonçalves Vilanova era um homem muito poderoso. Era o homem forte do governo. Tinha poderes quase ilimitados. Era o chefe de polícia num Estado policial, num regime de exceção violento como era o Estado Novo".

Agenor nascera em Palmeirais, região do Médio Parnaíba piauiense, em 1907, filho do coronel Joaquim Barbosa de Almeida e da dona de casa Raimunda Barbosa de Almeida. Foi o primeiro médico a tornar-se oficial da Polícia Militar do Piauí, formado pela Universidade do Brasil e especialista em doenças tropicais. Sua estréia na vida pública se deu num momento igualmente traumático para a sociedade piauiense. Havia uma epidemia de malária na Colônia Agrícola de David Caldas. Trata-se de doença que se caracteriza por febre intermitente e renitente. Inúmeros profissionais de saúde foram enviados para combater o problema naquele que era um dos mais importantes projetos agrícolas do governo ditatorial no Estado do Piauí. O interventor Landri Sales, no início da década de 30, criara o espaço como uma espécie de laboratório com o objetivo de garantir o retorno do rurícola ao seu lugar de origem. Conteria, desse modo, o êxodo rural, ao mesmo tempo em que propiciaria ao Estado uma oportunidade real de crescimento no setor agrícola, base da sua economia.

Situada à margem do rio Parnaíba, entre as cidades de Teresina e União, a colônia estava prosperando conforme o esperado. Subitamente, os colonos foram acometidos por um estranho mal que ceifou inúmeras vidas. Os médicos para lá enviados também adoeceram e retornaram para Teresina. Não quiseram mais trabalhar na colônia, temerosos que ficaram. Temiam pela própria vida e recomendaram que o local fosse isolado a fim de evitar a proliferação do contágio. Nenhum profissional de saúde queria ir para o local e os lavradores continuavam morrendo.

Foi quando descobriram aquele jovem médico desempregado, que estudara doenças tropicais no Rio. Agenor Barbosa de Almeida rumou para a colônia com uma disposição que deixou seus colegas de profissão apreensivos. "Muito cuidado", disseram-lhe. "Parece-nos que há uma progressão tremenda do contágio. Não sabemos a razão e muito menos o que fazer para evitar a proliferação".

Entre as providências adotadas pelo médico, a aplicação da quinina em todos os doentes. Alcalóide vegetal, extraído da casca da quina, o medicamento era dos poucos utilizados na época para o tratamento de estados febris interrompido a espaços. Contratou guardas sanitários e os espalhou por toda a extensão do lugarejo. Ato contínuo, mandou que fossem drenadas as lagoas que existiam dentro da colônia e procedeu-se uma limpeza nos riachos. O objetivo: atacar a doença em suas origens. O mosquito Anophelys foi completamente erradicado e Agenor tornou-se, ao custo de muita dedicação, um prestigiado profissional da área médica -- tão prestigiado que obteve indicação do próprio interventor Leônidas Melo para dirigir o Hospital Getúlio Vargas, construído em 1941 e considerado um elefante branco, como tantas outras obras do Estado Novo em Teresina. Foi presidente do Instituto de Assistência Hospitalar do Piauí, secretário-geral do Estado, deputado estadual nos períodos de 1947 a 1951 e de 1951 a 1955, primeiro vice-presidente da Assembléia, governador em exercício do Estado no período de 4/3/1952 a 11/3/1952 e prefeito de Teresina no quadriênio 31/1/1955 a 31/1/1959.

CHOQUE CULTURAL E SOCIAL

A ditadura varguista provocou um choque muito grande em todo o Estado, tanto na área cultural quanto no setor de infraestrutura. Em 1930, quando Getúlio Dornelles Vargas assumiu o poder, a cidade era provinciana ao extremo. Luz elétrica era privilégio de poucos -- alimentada por uma velha usina a lenha que fora inaugurada em 1914 na gestão de Miguel de Paiva Rosa. A iluminação pública era feita por lampiões. O abastecimento d'água fora implantado em 1904, na administração do então governador Arlindo Francisco Nogueira, mas atendia pouquíssimas casas. A maioria se abastecia da água apanhada nos rios Poti e Parnaíba e transportadas em ancoretas nos lombos de burros. A área central compreendia, no sentido Leste/Oeste, o perímetro que vai da Igreja de São Benedito, no Alto da Moderação, à avenida Beira Rio, hoje Maranhão; e, na direção Sul/Norte, o trecho entre a praça Saraiva e a rua Lisandro Nogueira (antiga rua da Glória). As cercanias eram ocupadas por casas de taipa e palha.

Vargas queria romper com o antigo, não apenas em Teresina, por isso destinou verbas para a implantação da infraestrutura e do saneamento nas capitais. O governador Leônidas Melo e o prefeito Lindolfo do Rêgo Monteiro receberam transferências vultosas em recursos para a abertura e calçamento de ruas e sua consequente arborização e embelezamento e a construção de prédios. Datam, do período, o gigantesco HGV (na época em que foi construído não havia tantos doentes; sobravam pavilhões e críticas ao desperdício), o Hotel Piauí (hoje Luxor Hotel), construído sob os escombros do antigo Café Avenida e que durante muito tempo serviu de abrigo para os mendigos e o Arquivo Público, construído com o material que sobrou do Hospital Getúlio Vargas.

Em 1936, primeiro ano da gestão de Lindolfo Monteiro, foram construídos cerca de 4.900 metros quadrados de calçamento. Nos anos seguintes, até 1940, nada menos que 10.900 mil metros quadrados. Ainda em 1936, Monteiro implementou os trabalhos de urbanização da avenida Frei Serafim -- antes uma região ocupada por chácaras e pequenas fazendas. Foi promovida a arborização de ruas e avenidas. Durante o Estado Novo, a cidade ganhou farta iluminação pública. Teresina ganha um Código de Posturas, que proíbe a construção ou reconstrução de casas de palha nas áreas urbanizadas .

Época de grande efervescência cultural, havia animadas tertúlias no Clube dos Diários, apresentações artísticas e eventos cívicos no Theatro 4 de Setembro e exibições cinematográficas marcantes no Cine Rex (“o melhor som da cidade”), pertencente aos empresários Alfredo Ferreira e Bartolomeu Vasconcelos. O Estado Novo é um grande paradoxo, pois ao mesmo tempo em que tenta construir uma nova realidade estrutural -- calcado no princípio da urbanidade e da civilidade -- trata o ser humano e seus valores e vulnerabilidades com extremo desprezo.

DIVERSIDADE HUMANA

A enorme diversidade humana atraída para a cidade não tardaria a se mostrar extremamente nocivo. Quase que diariamente ocorriam confrontos na periferia. A exploração do látex na Amazônia transformou Teresina em rota de passagem dos chamados “soldados da borracha”, que promoviam conflitos violentos.Eram comuns os distúrbios, especialmente na área do baixo meretrício, na margem do Parnaíba. As brigas explodiam a todo instante, envolvendo filhos da terra contra forasteiros na disputa pelo aconchego das mulheres da vida.

A praça Pedro II, palco da inquietação cultural e social da época, registra um acontecimento da maior significação para a tomada de providências por parte da Interventoria no aspecto da segurança pública. Um conflito do qual tomaram parte soldados da Guarnição Federal e da Polícia Militar colocou em polvorosa as famílias presentes àquele logradouro.

A parte baixa, como sabemos, é utilizada para o passeio dos rapazes e moças da fina flor da sociedade da Chapada do Corisco, ao passo em que, na parte baixa, ficam as empregadas domésticas, operários da Fábrica de Fiação e Tecidos e soldados da polícia e do 25º Batalhão de Caçadores. Há uma rua que corta a praça em diagonal e que além da divisão espacial é também marco da segregação dos menos favorecidos.

De repente, os soldados iniciam uma discussão que logo evolui para o confronto físico. A confusão se espalha na parte baixa da praça, levando os chamados filhos da elite a se queixarem da insegurança aos seus pais, que por sua vez fizeram eco das lamúrias às autoridades. Fazia-se necessário um plano de segurança para a cidade, ainda mais quando nos dias seguintes os distúrbios persistiram, avançando para a periferia e deixando toda a população inquieta.

Foi assim que Evilásio Gonçalves Vilanova veio parar em Teresina. Ele estava servindo na Guarnição Federal do Rio de Janeiro quando foi indicado por Landri Sales ao governador Leônidas Melo. A família do novo homem forte da segurança causou excelente impressão na cidade. A mulher, Nadir, foi comparada a uma atriz do cinema norte-americano, tal a sua elegência. A filha do casal, Marísia, era igualmente bela e, apesar da pouca idade, elegante.

Vilanova, por sua vez, impunha respeito pela altivez. Vestia-se bem e dançava como poucos. Gostava de bons vinhos, de boa música e de boas companhias. Não tarda em impor um estilo adquirido no campo de batalha, onde matar ou morrer tem importância menor do que o objetivo a ser alcançado.

APARÊNCIA CIVILIZADA

O professor aposentado Joaquim Ribeiro Magalhães, 78 anos, chegou em Teresina na década de 40 e testemunhou grande parte das transformações verificadas na cidade ao longo desses mais de sessenta anos. Segundo ele, quem visse o coronel não imaginaria, por trás daquela aparência civilizada, o sádico que ele realmente era. Os incêndios eram um acontecimento de causar dó, até porque era um fato por demais próximo da maioria da população. Segundo Magalhães, a capital não tinha subúrbio. “O bairro Vermelha era pouco habitado, o Porenquanto era a primeira passagem de carros vindos de outras cidades do Norte. Então, o que nós tínhamos eram ruas centrais, como São Pedro, Félix Pacheco, que naquele tempo se chamava São José, Olavo Bilac, que era chamada de Santo Antônio, todo esse espaço era preenchido por casas de palha; até próximo da Praça Saraiva, havia casas de palha”, relembra o professor.

Algumas eram bem servidas, com paredes altas, portas trabalhadas e apresentando condições de moradia. Os proprietários alegavam que a cobertura de palha era uma proteção para o calor intenso da cidade, mais forte entre os meses de agosto e dezembro, quando acontecia a maior parte dos incêndios. Produzir telhas em Teresina nunca foi difícil. O bairro Poti Velho é o maior exemplo disso, onde a produção é intensa atualmente. Na época havia, mas em menor escala.

Sotero Vaz da Silveira, ex-governador do Piauí, residia numa casa de excelentes condições, construída com madeira de qualidade e dispondo de mobiliário também de elevado nível. No entanto, a cobertura era de palha. Era situada na região central. Assim era a maioria das casas na capital piauiense nas primeiras décadas do século XX.

“Quando o fogo pegava, as pessoas diziam que ‘na rua do Cajueiro foram incendiadas cem casas’. Na verdade, só foi uma, essa tendo passado para as outras 99, porque eram todas emendadas uma na outra”, enfatiza Magalhães. “Era desse jeito que o fogo atingia todo um quarteirão. Às vezes o vento levava para o lado oposto, queimando outras 50 ou 60 casas. Ninguém via o céu, só aquela fumaça amarelada e cinzenta.”

Evilásio Gonçalves Vilanova era uma figura comum. Tinha estatura média, traços fisionômicos simpáticos, ligeiramente calvo e que conseguia transmitir, à primeira vista, uma impressão positiva. Tinha um sarcasmo muito grande ao falar. A característica se manifestava mais fortemente quando estava interrogando alguém importante.

Mantinha uma vigilância acentuada sobre toda a sociedade teresinense, não escapando nenhum comentário que se fizesse contra a administração de Leônidas. Seus “olhos” e “ouvidos” estavam em todos os lugares através dos “secretas” que se posicionavam em lugares estratégicos, como Bar Carvalho e Café Avenida.

PROPÓSITOS DE VILANOVA

O escritor e presidente do Conselho Estadual de Cultura, Manoel Paulo Nunes, afirma não ter dúvidas dos propósitos de Vilanova. “Ele queria ser governador, em substituição ao doutor Leônidas, não havia melhor maneira do que desestabilizando a administração. Os incêndios foram a forma por ele encontrada para alcançar seus objetivos, porque ao mesmo em que acusava a oposição, representada por José Cândido Ferraz, de responsabilidade pela autoria, ele prejudicava o governador, expondo o quanto ele era frágil no enfrentamento e resolução da crise", afirma Paulo Nunes. “Eu acredito, tenho a convicção, sobre os incêndios, de que o autor dessa ignomínia foi o chefe de polícia Evilásio Vilanova. Ele era uma figura sinistra, era um homem perverso, foi comprovado em vários inquéritos, que adotou práticas de atrocidade contra a população de Teresina, principalmente os pobres, que eram duramente castigados para apontar a falsa autoria dos incêndios. Tenho a certeza plena de que ele (Vilanova) foi o autor destes incêndios, apesar de que ele se defendia acusando outra pessoa.”

O comandante da polícia acusava o médico José Cândido Ferraz, militante da UDN -- União Democrática Nacional e crítico ferrenho da administração Leônidas Melo. Proveniente de uma família rica e extremamente culto, Ferraz desprezava a ditadura de Vargas e seus prepostos e chamava Leônidas de “filhote da repressão”.

A disputa foi levada às últimas conseqüências. Da condição de crítico e denunciante, o médico de oposição José Cândido Ferraz logo passaria a réu. De acordo com a versão do governo, ele estaria por trás dos incêndios com o fim de desgastar a imagem do interventor e provocar a sua queda. Nesse momento, a participação da polícia sob o comando de Evilásio Vilanova se intensifica para assegurar a confirmação do argumento oficial. Cerca de duzentas pessoas foram interrogadas na Delegacia de Segurança e Ordem Pública, das quais 37 foram presas e maltratadas. Eram homens do povo, pessoas pobres e sem instrução, que se viram de uma hora para outra espancados e enterrados vivos num festim diabólico de torturas. O objetivo: encontrar responsáveis. Mais que isso: indicar o doutor José Cândido como o grande culpado.

De 1941 a 1943, Evilásio Gonçalves Vilanova transformou-se num carrasco, cuja atuação não encontrava barreiras. A violência e o sadismo do chefe da polícia foram inúmeras vezes comunicados ao interventor, que demorou muito a tomar providências. O assassinato sob tortura do operário Manoel Gomes Feitosa foi determinante para uma tomada de atitude por parte de Leônidas. Só então a sociedade viu que precisava fazer alguma coisa para barrar o sadismo de Vilanova.

CENTRAL DE ARTESANATO, CENTRAL DE TORTURAS

O prédio da central de artesanato foi construído nos anos 30 para funcionar como quartel da Força Policial, logo transformado em centro de torturas do Estado Novo. A rusticidade de sua arquitetura remete a um tempo em que centenas de vozes, clamores e lamentos eram impiedosamente silenciados.

Os suspeitos eram levados primeiro para a Sala de Interrogatórios, onde eram submetidos a intensos e violentos questionamentos que entravam pela madrugada e nos quais os presos eram pessoas humildes que apanhavam e gritavam, muitas vezes até morrer. A cidade ouvia aqueles gritos de medo e dor, mas ninguém, nem mesmo o interventor, tinha coragem de desafiar o poderoso chefe da corporação policial de Teresina.

Os presos também eram levados para lugares desertos, fora da cidade, onde podiam apanhar e gritar ainda mais. O sadismo do coronel Vilanova não tinha limites, ele chegava ao extremo de enterrar suas vítimas até o pescoço para confessar crimes que não haviam cometido.

Albino Alencar era um comerciante de médio porte estabelecido no centro da cidade, à rua Teodoro Pacheco. Tratava-se de alguém bastante chegado ao sexo oposto e que tinha muitas admiradoras. Alto, de feições rosadas e muito bonito, o proprietário da “Casa Tamoio” entrou em rota de colisão com Vilanova. Iniciou-se um processo de detratação mútua, sendo que aqui e ali Albino Alencar dizia alguma coisa que incomodava o chefe de polícia. Pensando que estando na ausência de Vilanova não haveria problema, fazia seus comentários diante de “secretas” a serviço do coronel, que corriam a lhe contar.

Evilásio começou a perseguir Albino, mandando prendê-lo várias vezes. Numa dessas prisões, cavou um buraco no centro de torturas do bairro Ilhotas e jogou o comerciante dentro, enterrando-o até a altura do pescoço. Albino Alencar ficou só com a cabeça de fora e viu a morte de perto. O chefe de polícia queria forçá-lo a assinar um documento acusando o médico José Cândido Ferraz como incendiário. O comerciante nunca cedeu aos maus tratos, sempre recusando a caneta e o papel que lhe eram dados.

Tempos depois de todo esse sofrimento, Albino Alencar conseguiu se eleger vereador de Teresina em duas oportunidades, ambas pela extinta UDN. A população entendeu que, apesar dos piores tormentos, nunca traiu suas convicções políticas e nem lançou a desgraça injustamente sobre seus partidários.

DESABAFO DE LEÔNIDAS

Diante do médico, assessor e amigo, Leônidas desabafou dizendo que não tinha mais nenhuma confiança em Evilásio Gonçalves Vilanova. "Recebi denúncias de maus tratos contra os presos", argumentou. "Preciso que investigue a veracidade e me façam um relatório detalhado da situação."

Agenor convocou seu amigo e também médico Antenor Neiva para a empreitada. Eles encontraram muita gente trancafiada e espancada. No relato ao interventor, Vilanova é enfocado como violento e sádico. Informam, ainda, que "(o operário) Manoel (Gomes) Feitosa tinha lesões graves no corpo, contusões e marcas de chibata. "Parece que houve ruptura intestinal", escreveram". "O homem está com o abdome muito grande; devido a essa pancadaria, houve alguma lesão intestinal." Manoel Gomes Feitosa não tardou a morrer. O chefe de polícia o enterrou sem fazer exame de corpo de delito ou autópsia.

Agenor foi perseguido por Vilanova antes, durante e depois das investigações. O objetivo era claro: fazê-lo parar. O médico não parou, deu seguimento às investigações e apresentou ao interventor um relatório detalhado de toda a situação. “Ali encontrei presos maltratados, sujeitos a todo tipo de sofrimento”, disse ao autor destas linhas em dezembro de 2005. “Mas também ficamos convencidos de que o doutor Leônidas não tinha conhecimento do que ocorriam nas masmorras de Vilanova. Era um quadro deprimente, lamentável, terrível; em que centenas de homens comuns, cidadãos do povo, cujo crime era serem pobres, foram levados para interrogatório e depois trancafiados e espancados como bandidos, numa brutal agressão aos seus mais elementares direitos, seja como seres humanos, seja como cidadãos vivendo sob um regime institucional.”

Segundo ele, em regimes ditatoriais punem-se os crimes políticos. É assim que muitos perdem os seus direitos. Não havia, no seu entender, razões para tantas prisões a não ser a ira do chefe de polícia, que a todo custo queria incriminar o interventor, mostrando-o fraco perante o Governo Federal, ao mesmo tempo em que ganhava pontos firmando-se como o herói que identificara e punira os incendiários, livrando o povo de tamanho tormento.

“Leônidas foi um amigo muito especial ao qual tive a oportunidade de servir", comenta. "Infelizmente, com o passar do tempo, foram surgindo as divergências dentro da Interventoria. Lembro-me claramente do episódio em meu cunhado, Clemente Pires Ferreira, que foi preso pela polícia de Vilanova. Procurei Leônidas e pedi a sua intervenção em favor do meu cunhado, o que não aconteceu. O interventor cruzou os braços e deixou que Vilanova praticasse o seu sadismo costumeiro, o que, para a compreensão que eu tinha na época, não passava de retaliação contra mim por causa do relatório que produzi, expondo os bastidores da sua ação como chefe de polícia."

Conta que pediu exoneração das funções junto ao governo do Estado e imediatamente aceitou convite dos médicos José Cândido Ferraz e Eurípedes Aguiar para ingressar nos quadros da UDN -- União Democrática Nacional. Elegeu-se, em 1946, deputado estadual, chegando à vice-presidência da Assembléia Legislativa. Em 1951, derrotou o também médico Clidenor de Freitas Santos na disputa pela prefeitura de Teresina.

"Foi uma disputa acirrada contra o prefeito de então, doutor João Mendes Olympio de Melo, que usou todo o poder da máquina administrativa para me derrotar. O povo ficou ao meu lado, venci a eleição. Ao tomar posse, encontrei a prefeitura completamente sucateada", destaca. "Procurei, na medida do possível, fazer uma administração empreendedora. Ao fim de tudo, entendi que o caminho da honestidade, da correção, não gera nenhum interesse por parte do cidadão comum. Isso me desanimou bastante e me levou a abandonar a política."

Agenor afirma que pautou sua gestão pela honestidade e decência. Diariamente apresentava, na Rádio Difusora, um boletim com arrecadação e gastos da prefeitura, além do saldo depositado em conta bancária. "Fazia questão, ao fim de cada informe, de avisar à população que o dinheiro se encontrava depositado no Banco do Brasil", complementa.

CINTURÃO DE FOGO - TERESINA SITIADA PELOS INCÊNDIOS

1 - CHAPADA DA TRAGÉDIA

Meio-dia. De repente, a calmaria de Teresina é preenchida por gritos desesperados e a presença incômoda da fumaça preta que sobe em direção ao céu azul.

Os sinos tocam freneticamente, sinal de alerta na chapada da miséria. Mais uma casa de palha pegando fogo, mais uma família desabrigada e quem sabe mais um sem número de mortos. O calor e o vento ajudam a propagar o incêndio. Em poucos minutos não restará absolutamente nada do casebre atingido. Todos se unem no esforço em favor das vítimas dos incêndios. De nada adianta. Aumenta a cada dia o clamor popular. Os incêndios se repetem quase sempre na mesma hora diariamente. Os sinos da igreja tocam. A população já sabe o que está acontecendo... Casas de palha queimadas, famílias desabrigadas.

Dezenas de obras literárias e trabalhos científicos refletem sobre o tema, numa prova do enorme drama em que os incêndios se constituíram para os moradores da capital. O assunto marcou de forma tão indelével a vida da população que até hoje é lembrado com muita tristeza e utilizado por estudiosos para justificar o caráter oposicionista do teresinense. "A população tem pavor do governo por causa do enfrentamento verificado nos anos 40. Qualquer candidato de oposição leva a melhor em Teresina, que se caracteriza como uma cidade irredenta", diz o escritor Manoel Paulo Nunes, professor universitário aposentado e presidente do Conselho Estadual de Cultura.

Teresina convive com casas de palha desde os seus primórdios. Saraiva, ao fundar a cidade em 1852, instalou a Tesouraria Provincial numa construção de palha. As tropas federais se acomodaram primeiro num barracão coberto de palha. Durante a construção da cidade ergueram-se barracões provisórios para a guarda do material e abrigo de pedreiros, carpinteiros, ajudantes, escravos e militares. As choças eram feitas de pau a pique e taipa, com paredes de varas entrecruzadas e barro que tapava os espaços, servindo de reboco. Mesmo as casas de adobo recebiam cobertura de palha.

Existência de grande concentração de babaçu nas margens do rio Parnaíba fornecia a matéria-prima necessária para as primitivas habitações da capital. Além da oferta em larga escala, a palha do babaçu tem a propriedade de amenizar o clima úmido e quente da região.

Na condição de primeira capital planejada do Brasil, Teresina conta inicialmente com grande número de funcionários públicos e autoridades políticas, residentes em casas de melhores condições, mas as casas de tijolos cobertas de telhas não eram suficientes para abrigar a grande quantidade de operários, comerciantes e forasteiros atraídos pela oportunidade em mudar de vida. No final do século 19, uma grande seca se abateu sobre o Nordeste.

Do agreste piauiense e cearense, centenas de milhares de pessoas acorrem para Teresina em busca da proteção social oferecida pelo governo e de um canto para fixar moradia. Surgem com isso inúmeras casas de palha na periferia, de forma desordenada. Não havia nenhuma regra para a construção. As pessoas chegavam, erguiam seus barracos de paredes e cobertura de palha. Moradias que se interligavam e se entrelaçavam, tão próximas umas das outras que muitas vezes não dava para a passagem de uma pessoa.

O Plano Saraiva previu a instalação da área urbana num quadrilátero que vai, em sentido norte a sul, do Largo do Liceu à praça Saraiva, e de leste a oeste, do Alto da Moderação, onde mais tarde seria construída a Igreja de São Benedito, ao Largo da Bandeira, onde fincou-se o marco de fundação. No primeiro século de existência, Teresina sempre possuiu mais casas de palha do que de telha. Havia uma lei provincial com o fim de evitar a superpopulação da cidade. Por isso, era proibido construir-se casas de palha no perímetro central. Os casebres miseráveis se expandiram em direção à periferia. Mas isso não impedia que coexistissem com as construções de alvenaria.

Percebendo a extensão do problema e a dificuldade que traria no futuro próximo, um deputado chamado David Moreira Caldas apresentou na Assembléia Provincial um projeto de lei estabelecendo que anualmente o governo deveria destinar a importância de dois contos de réis para a substituição progressiva das moradas com a cobertura rústica por telheiros. A proposta, é claro, não obteve aprovação. O poder público não dispunha de tanto dinheiro. Por outro lado, até mesmo o governo instalava órgãos públicos em barracões improvisados com aquela cobertura. As tais casinhas não eram atributo exclusivo da pobreza. Mesmo quem tinha algum dinheiro possuía também os seus casebres, com o fim de alugá-los para quem não tinha. Assim, muitos “conjuntos” residenciais da periferia pertenciam às famílias abastadas da capital.

De acordo com levantamento realizado pela Interventoria, há quatro mil casas de alvenaria contra 12 mil e 700 de palha. Algum gênio da burocracia local mandou que, ao invés de casas de palha, estas fossem registradas como de madeira, muito provavelmente com receio da imagem que aquele resultado fosse produzir fora do Piauí.

2 - A POPULAÇÃO MIGRANTE

A maioria dos moradores da periferia é migrante. Eles vêm das mais diferentes cidades e localidades rurais do Piauí e até de outros Estados, como Ceará, Maranhão e Pará. Chegam pela Rua dos Viajantes, ou pela estrada federal que situa-se além do rio Poti. Para alguns, a trajetória rumo ao próprio barraco inicia na casa de um amigo ou parente, até que consiga se desfazer completamente dos poucos bens deixados no meio rural ou nas cidades menores, de onde eles vêm. Para outros, o primeiro abrigo é debaixo de alguma árvore frondosa, onde armam sua trempe e estendem suas redes e esteiras, fazendo as necessidades em redor, nas imediações. Não há qualquer amparo social para estes desvalidos, quando muito a esmola de algum rico generoso ou a perseguição policial, esta mais em voga nos dias que correm.

Seu deslocamento é constante na busca de um espaço ideal para fixar-se. Tem como destino um lugar distante dos núcleos urbanos, porque não há programa de incentivo à habitação popular. As construções de alvenaria estão concentradas na cidade projetada um século e meio atrás, de área bastante limitada para a grande migração registrada a partir do início deste século XX. Nos primeiros anos, durante a gestão de Arlindo Francisco Nogueira, começaram os serviços de abastecimento d'água da capital. O sistema de iluminação seria implantado apenas uma década depois, na administração do governador Miguel de Paiva Rosa.

As pessoas querem morar em Teresina alegando que a cidade dispõe de melhores condições de infraestrutura e saneamento. Não sabem o que as espera até chegar à capital, onde deparam-se com uma verdadeira "cidade de palha", em que a média é de três casas de palha para uma de alvenaria. A migração explodiu a partir dos anos 20 com João Luiz Ferreira no poder. Político de rara projeção, engenheiro civil e consciente da necessidade de ligar Teresina a outros centros do país, iniciou o processo de construção de estradas de rodagem. Antes, eram apenas as veredas estreitas, ao longo das quais aglutinavam-se bandos de malfazejos à espera dos viajantes desavisados. A partir de então, os demais governantes ocuparam-se em ampliar a rede de rodovias estaduais.

Em 1941, começaram os incêndios. O cinturão de palha começou a pegar fogo, desabrigando e matando centenas de milhares de pessoas. No primeiro momento, os episódios dantescos eram atribuídos às altas temperaturas registradas em determinados períodos e à facilidade do material empregado nas construções rústicas para produzir a combustão. Não tardou para que o aspecto criminoso fosse introduzido.

Os incêndios começaram a gerar muita desordem na periferia, avançando tal situação para o centro das decisões políticas e administrativas. A repercussão tornou-se terrível para o interventor. Vilanova pediu verbas para a aquisição de carros para o Corpo de Bombeiros. Os veículos mal conseguiam adentrar as ruas esburacadas dos subúrbios.

Desde que os incêndios iniciaram toda a população de Teresina, independente da condição social, vivia em pânico. Podiam acontecer a qualquer momento, sinalizados primeiro pelos sinos da Igreja de São Benedito. Os sacerdotes haviam colocados vigias na torre para dar o sinal, agilizando assim o socorro às vítimas. Nem sempre ágil. As perdas resultavam enormes a cada nova ocorrência, porque a cidade era cercada por um cinturão de miséria e palha.

3 - O DRAMA DE LEÔNIDAS

Desde que os incêndios iniciaram, alguns anos antes, que a vida de Leônidas se transformara num verdadeiro inferno. Literalmente falando. Uma carreira que se projetava como grandiosa, fruto de uma vivência difícil, a partir de Barras, terra natal do interventor, passando pelos estudos, pela superação das dificuldades, até firmar-se na medicina e na política e ser escolhido pelo ditador em pessoa para exercer a mais alta função pública no Estado do Piauí.

Na verdade, uma província, a representação em estado pleno do modelo colonialista português. Onde o poder público, em todos os seus níveis e instâncias, existe unicamente para atender os interesses de uns poucos em detrimento da grande maioria. Uma província em que apenas algumas famílias detinham todo o controle sobre a política e os destinos de milhares de outras famílias, concedendo-lhes esmolas e criando, desde sempre, um ajuntamento enorme de miseráveis e um vício nestes que não lhes permitia qualquer possibilidade de ascensão social.

Teresina reflete esse caos social na década de quarenta. Uma cidade de pouco mais de setenta mil habitantes em que mais da metade habita casebres de palha que formam um verdadeiro cinturão de miséria em torno da ilha de prosperidade que é a avenida Getúlio Vargas. Os mais ricos já se aventuravam em morar em chácaras para além do rio Poti, mas a travessia era sempre dificultosa. Mesmo assim, faziam questão de se distanciar cada vez mais daquela plebe fedida e carente de tudo. Diariamente, nas portas das famílias mais abastadas, amanheciam de vinte a trinta pessoas. Em tempo de política esse número era bem maior. Agenor, como poucos, conhece as carências do povo da capital. Médico, de família influente e abastada, esforça-se para atender tantos apelos. Alimento, roupas, assistência de saúde; eram tantos os pedidos que não teria como listá-los assim de memória.

A redoma de pobreza no entorno de Teresina avança sobre a “nobreza”. A cada ano, os casebres imundos tornam-se mais próximos, infestando a planejada urbe de Saraiva. Da rua Paissandu à rua da Glória, no sentido sul-norte; das escadarias da Igreja de São Benedito, passando pelo centro de poder político e econômico até chegar na beira do rio. No começo, apenas respingos. Com o passar do tempo, procriavam como roedores. Novas casinhas, muito mais gente sem emprego e sem oportunidade, nada de água ou esgoto, nada de luz elétrica e nem mesmo um mobiliário decente. O que fazer? Proíbe-se a construção das casinhas no centro. Proliferam agora no entorno, no “cinturão de miséria, palha e fogo”.

Natural da simpática cidade de Barras, a duzentos e poucos quilômetros da capital, Leônidas de Castro Melo fizera estudos preliminares na própria terra natal, transferindo-se adolescente para a capital. Em Teresina, fez o curso preparatório, obtendo sucesso e conseguindo se projetar pra uma vaga na concorrida Universidade do Brasil, no Rio, onde estudou medicina, retornando em seguida para o Piauí. Ministrou aulas ao mesmo tempo em que praticava a medicina, notabilizando-se de imediato como promissora liderança. Eleito membro do Conselho de Intendência Municipal, foi impedido de concluir o mandato pela Revolução de 1930, que cassou os mandatos de todos em todo o Brasil com o objetivo de produzir uma ruptura total com o passado.

Em 1933, no governo do interventor Landri Sales, foi indicado secretário-geral do Estado. Dois anos depois, obteve êxito na disputa indireta para o governo estadual. Em 1937, com a instauração do Estado Novo, ganhou poderes de interventor, com a missão de “humanizar” a política piauiense, realizando paralelamente a urbanização das principais cidades, em especial Teresina, que naquele tempo não era mais do que uma província, distante dos centros de decisão política da nação e repleta de ruas sem calçamento e casas de taipa e palha, sem nenhuma estrutura de abastecimento d’água e esgotamento sanitário.

Parecia-se, em quase tudo, com aqueles burgos medievais, em que as necessidades fisiológicas eram lançadas no meio da rua, juntando à água produzida pelas cozinhas residenciais e serpenteando a céu aberto, até esbarrar em algum organismo frágil e transformar-se em mais uma entre tantas doenças que martirizaram a maioria naqueles tempos. Na qualidade de médico, Leônidas conhecia muito bem a precariedade da saúde do teresinense. Conhecia suas causas e sabia das conseqüências funestas. Como governante, tinha a obrigação de adotar providências para estancar o processo.

O MÉDICO AGENOR BARBOSA DE ALMEIDA

1 – EPIDEMIA DE MALÁRIA

Havia uma epidemia de malária na Colônia Agrícola de David Caldas. Trata-se de doença que se caracteriza por febre intermitente e renitente. Inúmeros profissionais de saúde foram enviados para combater o problema naquele que era um dos mais importantes projetos agrícolas do governo ditatorial no Estado do Piauí.

O interventor Landri Sales, antecessor de doutor Leônidas, criara o espaço como uma espécie de laboratório com o objetivo de garantir o retorno do rurícola ao seu lugar de origem, evitando passar precisão na cidade ao mesmo tempo em que criava uma oportunidade real de crescimento agrícola. A maior parte dos produtos consumidos no Piauí vem do Ceará e outros Estados.

Situada à margem do rio Parnaíba, entre as cidades de Teresina e União, a colônia estava prosperando conforme o esperado. Subitamente, os colonos foram acometidos por um estranho mal que ceifou inúmeras vidas. Os médicos para lá enviados também adoeceram e retornaram para Teresina. Não quiseram mais trabalhar na colônia. Temiam pela própria vida e recomendaram que o local fosse isolado a fim de evitar a proliferação do contágio.

O fato é que nenhum profissional de saúde queria ir para o local e os lavradores continuavam morrendo sem nenhuma proteção. Foi quando descobriram aquele jovem médico desempregado, que estudara doenças tropicais no Rio. Agenor Barbosa de Almeida rumou para a colônia com uma disposição que deixou seus colegas de profissão apreensivos. "Muito cuidado", disseram-lhe.

"Parece-nos que há uma progressão tremenda do contágio. Não sabemos a razão e muito menos o que fazer para evitar a proliferação da maneira como está ocorrendo". Entre as providências adotadas pelo médico, a aplicação da quinina em todos os doentes. Alcalóide vegetal, extraído da casca da quina, o medicamento era dos poucos utilizados na época para o tratamento de estados febris interrompido a espaços. Contratou guardas sanitários e os espalhou por toda a extensão do lugarejo.

Ato contínuo, mandou que fossem drenadas as lagoas que existiam dentro da colônia e procedeu-se uma limpeza nos riachos. O objetivo: atacar a doença em suas origens. O mosquito Anophelys foi completamente erradicado e Agenor tornou-se, ao custo de muito sacrifício, um prestigiado profissional da área médica. Tão prestigiado que obteve indicação do próprio interventor Leônidas Melo para dirigir o Hospital Getúlio Vargas, considerado um elefante branco.

Leônidas tinha como objetivo, ao criar o Hospital, torná-lo uma referência regional. Mas não sabia como fazê-lo. Gigantesca, a casa de saúde era extremamente onerosa. Não haveria dinheiro para manter sem que contasse com um administrador por excelência. Alguém que tivesse zelo pelo bem público. Agenor Barbosa de Almeida pareceu-lhe a pessoa ideal, pois topara um desafio recusado por muitos e se dera bem. Melhor que isso, nomeado depois para dirigir a colônia, transformara-a numa das regiões agrícolas mais produtivas do meio-norte.

A produção, com o fim da peste, tornou-se enorme e passou a ser exportada. Criou-se uma cooperativa que possibilitou intercâmbio com vários mercados de outros Estados, a exemplo do Maranhão e Ceará. O administrador conseguiu implantar energia elétrica à base de lenha para dinamizar ainda mais a produção. Tratava-se de uma verdadeira revolução, visto a precariedade da energia até mesmo na capital.

Estes e outros motivos foram citados pelo interventor quando o convidou para dirigir o recém-construído Getúlio Vargas e o Instituto de Assistência Hospitalar. Agenor ponderou se deveria, porque nunca fora sua intenção exercer funções tão importantes, ainda mais em regime de exceção. Convivera, no Rio, com intelectuais de estirpe, pessoas que condenavam os procedimentos de Vargas e sua ditadura calcada na perseguição política, na cassação dos direitos de expressão do pensamento e das liberdades políticas.

Ponderou demoradamente sobre a proposta antes de aceitá-la. "Devo dizer-lhe que levei em consideração, ainda, a sua organização como oficial da Polícia Militar. Pelo que me consta, o senhor foi aprovado em concurso público e organizou adequadamente o hospital daquela corporação, inclusive observando os princípios disciplinares do Exército. Parece-me a pessoa certa para colocar a casa em ordem", disse Leônidas, ao consultá-lo sobre o assunto.

O HGV era um verdadeiro elefante branco. Construído pelo competente engenheiro Cícero Ferraz de Sousa Martins, havia dúvidas sobre sua capacidade de funcionamento. Será que o poder público estadual teria dinheiro para bancá-lo? Agenor provou que sim. Construiu, posteriormente, desde a cozinha até as enfermarias, delimitando os espaços físicos conforme as regras de melhor funcionamento. Em pouco tempo, passou a receber e tratar pacientes não apenas de Teresina, mas de outros municípios piauienses; não apenas do Piauí, mas de outros Estados das regiões Norte e Nordeste. Vinha gente do Pará, do Amazonas e de muitos outros lugares. Com isso, Agenor angariou fama e respeitabilidade.

Não chegava a ser um confidente do interventor, mas a saúde pública era um setor nevrálgico do governo, assim como infraestrutura e saneamento, que mantinham uma interligação profunda. A cidade não dispunha das condições necessárias de abastecimento d’água e esgotamento sanitária, gerando por conseqüência inúmeras doenças. Os diretores dos setores e obras públicas e saúde eram vitais para o bom andamento das ações da Interventoria. Só havia dois critérios para o preenchimento do cargo: ter um pistolão poderoso no governo ou reconhecida capacidade profissional. Agenor contava com as duas credenciais.

Era filho do coronel Joaquim Barbosa de Almeida, liderança política da cidade de Palmeirais, e de dona Raimunda Ribeiro de Almeida. Neto do coronel Marcolino José Ribeiro, cuja liderança se estendia por todo o Médio Parnaíba, principalmente nas cidades de Amarante, Regeneração, São Pedro, dentre outras.

2 - CONFRONTO COM EVILÁSIO

A instituição policial, criada para garantir a segurança da sociedade, terminou se transformando em poderosa aliada da classe dominante. Nos anos 1940, Teresina foi "varrida" por uma onda de incêndios contra as humildes residências dos moradores da periferia. Dos cerca de 70 mil habitantes da época, aproximadamente 35 mil residiam em áreas urbanas ou suburbanas. Morar em casa de palha não era, naquele tempo, sinônimo de pobreza. Grande parte da população, mesmo membros da elite, residia em casas de palha. Era uma forma de conviver com as altas temperaturas registradas na capital.

No entanto, os incêndios atingiam apenas as casas localizadas na periferia, em bairros como Cajueiro, Vermelha, Piçarra, Mafuá e Matinha. A oposição culpava o governo. O governo culpava a oposição. Havia, contudo, uma determinação do Estado Novo: os centros urbanos deveriam ser modernizados. As casas de palha em nada condiziam com essa perspectiva de modernidade. Os incêndios se transformaram em fato político. O médico José Cândido Ferraz denunciava que eram provocados por gente do governo de Leônidas de Castro Melo para garantir a "limpeza" da área urbana de Teresina, favorecendo a construção de novos e modernos prédios.

Cerca de duzentas pessoas foram inquiridas na Delegacia de Segurança e Ordem Pública, das quais trinta e sete foram presas e maltratadas. Os homens do povo viram-se, de uma hora para outra, espancados e enterrados vivos num festim diabólico de torturas inimagináveis sob o comando de Evilásio Vilanova.

As torturas ocorriam geralmente na Ilhotas, Campo de Aviação e Tabuleta, naquela época totalmente desabitados. Pelo menos um dos torturados não resistiu: o operário Manoel Gomes Feitosa, morto em 1943. As ocorrências chegaram aos ouvidos do governador. Leônidas, então, chamou o diretor do Hospital Getúlio Vargas, doutor Agenor Barbosa de Almeida, e o também médico Antenor Neiva, e solicitou que eles fizessem uma investigação junto aos presos.
"Recebi denúncias de maus tratos contra os presos", justificou Leônidas. "Preciso que investiguem a veracidade e me façam um relatório detalhado da situação."

Os médicos encontraram muita gente trancafiada e espancada. No relato ao interventor, Vilanova é enfocado como violento e sádico. Informam, ainda, que Manoel Feitosa tinha lesões graves no corpo, contusões e marcas de chibata. "Parece que houve ruptura intestinal", escreveram. "O homem está com o abdome muito grande; devido a essa pancadaria, houve alguma lesão intestinal." Manoel Gomes Feitosa não tardou a morrer. O chefe de polícia o enterrou sem fazer exame de corpo de delito ou autópsia.

Agenor Barbosa de Almeida era major médico da Polícia Militar do Estado formado pela Universidade do Rio de Janeiro. Foi depois presidente do Instituto de Assistência Hospitalar do Piauí, secretário-geral do Estado, deputado estadual nos períodos de 1947 a 1951 e de 1951 a 1955, primeiro vice-presidente da Assembléia, governador em exercício do Estado no período de 4/3/1952 a 11/3/1952 e prefeito de Teresina no quadriênio 31/1/1955 a 31/1/1959.

3 - VÍTIMA DE RETALIAÇÃO

Agenor, entrevistado pelo autor em duas oportunidades, a primeira delas em dezembro de 2005, declarou que foi o primeiro militar médico da Força Policial do Piauí, atuando depois como diretor do IAH (Instituto de Assistência Hospitalar) e do HGV (Hospital Getúlio Vargas). "Teresina, nos anos 40, era uma cidade tranqüila. Eu costumava me deslocar à pé, da minha residência, nas imediações da praça Landri Sales (Liceu), ao HGV, sem que houvesse ninguém para importunar-me durante o trajeto", diz. Aos 98 anos, parece-nos bastante lúcido.

Ex-prefeito de Teresina e ex-deputado estadual, Agenor mora atualmente (dezembro/2005) no Rio de Janeiro e fala com entusiasmo sobre a atuação na política do Piauí. "Leônidas foi um amigo muito especial ao qual tive a oportunidade de servir", comenta.

"Infelizmente, com o passar do tempo, foram surgindo as divergências dentro da Interventoria. Lembro-me claramente do episódio com meu cunhado, Clemente Pires Ferreira, que foi preso pela polícia de Vilanova. Procurei Leônidas e pedi a sua intervenção em favor do meu cunhado, o que não aconteceu. O interventor cruzou os braços e deixou que Vilanova praticasse o seu sadismo costumeiro, o que, para a compreensão que eu tinha na época, não passava de retaliação contra mim por causa do relatório que produzi, expondo os bastidores da sua ação como chefe de polícia."

Conta que pediu exoneração das funções junto ao governo do Estado e imediatamente aceitou convite dos médicos José Cândido Ferraz e Eurípedes Aguiar para ingressar nos quadros da UDN (União Democrática Nacional). Elegeu-se, em 1946, deputado estadual, chegando à vice-presidência da Assembléia Legislativa. Em 1951, derrotou o também médico Clidenor de Freitas Santos na disputa pela prefeitura de Teresina.

"Foi uma disputa acirrada contra o prefeito de então, doutor João Mendes Olympio de Melo, que usou todo o poder da máquina administrativa para me derrotar. O povo ficou ao meu lado, venci a eleição. Ao tomar posse, encontrei a prefeitura completamente sucateada", destaca. "Procurei, na medida do possível, fazer uma administradora empreendedora. Ao fim de tudo, entendi que o caminho da honestidade, da correção, não gera nenhum interesse por parte do cidadão comum. Isso me desanimou bastante e me levou a abandonar a política."

Agenor afirma que pautou sua gestão pela honestidade e decência. Diariamente apresentava, na Rádio Difusora, um boletim com arrecadação e gastos da prefeitura, além do saldo depositado em conta bancária. "Fazia questão, ao fim de cada informe, de avisar à população que o dinheiro se encontrava depositado no Banco do Brasil", complementa.

O CONTROLE DA INFORMAÇÃO NO PIAUÍ NA ÉPOCA DO ESTADO NOVO

Juntamente com o Estado Novo, Getúlio Vargas implantou também o DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, que tem por finalidade monitorar a ação da imprensa escrita. Jornais de São Paulo e Rio, principalmente, são fiscalizados de forma minuciosa. Nenhuma notícia é publicada sem que passe, antes, pelo crivo dos censores oficiais.

Nos Estados, a situação é a mesma. Os interventores criam seus próprios departamentos de fiscalização da mídia. No Piauí, a vigilância é feita pelo DEIP, o famigerado Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, que joga na clandestinidade todos os veículos de comunicação que "divulgarem informações contrárias aos interesses da Interventoria". O jurista Cronwell de Carvalho responde pelo órgão.

No Diário Oficial, a propaganda do Estado Novo e da Interventoria, representada por Leônidas: “Sua Excelência, o governador Leônidas de Castro, tem empreendido todo o esforço possível para compensar a carência de recursos financeiros do Tesouro Estadual no sentido de oferecer melhores condições aos seus concidadãos piauienses. Todos sabem o quanto ele se empenha em promover o desenvolvimento do Piauí. Não procedem, portanto, as críticas da oposição udenista, que em tudo vê defeito. O governador tem trabalhado, sim, e continuará trabalhando diuturmanente para dar continuidade ao processo de modernização por ele implementado. Água, energia, telefone, transporte público são apenas algumas das obras realizadas por Sua Excelência. Mas sem nenhuma dúvida seu maior legado para as futuras gerações será a saúde e a educação, tendo em vista a magnífica obra do Hospital Getúlio Vargas e, no campo educacional, a conclusão do Liceu Piauiense. Contabilizemos ainda a ação do Poder Público na abertura de estradas, que favorecem e facilitam a ligação com o interior do Estado, além de garantir acesso aos Estados vizinhos, o que antes se constituía em verdadeira tortura. Abrem-se logradouros, ampliam-se os existentes, melhora-se a paisagem urbana de Teresina e das principais cidades piauienses...”

Praça Rio Branco. Centro comercial de Teresina. O pulmão econômico-financeiro da Cidade Verde. Diariamente, milhares entram e saem dos estabelecimentos comerciais, onde se vende de tudo, desde roupas e perfumaria a produtos alimentícios e gêneros para o meio rural. Homens e mulheres visitam as casas comerciais num entra e sai que traduz a imagem de um formigueiro humano.

Há senhores de terno e gravata desfrutando do clima agradável que predomina sob as árvores no passeio da praça. Formam ali, naquele centro econômico e financeiro, um reduto das discussões do dia-a-dia, que não raro deriva para a mesa de bar ou encerra numa rodada de baralho num dos bares das cercanias ou ainda na assistência a esta maravilha da arte moderna que é o cinema. Em redor da praça Rio Branco florescem as casas de exibição cinematográfica, apresentando sempre novidades que atraem grande platéia.

Há poetas, jornalistas e intelectuais, informando, se informando e captando assunto para suas composições poéticas ou crônicas, publicadas geralmente em veículos de circulação esporádica.

É dali, da praça Rio Branco, que partem os mais variados comentários em torno da política local, seguindo em direções inúmeras, atingindo ou não o seu objetivo de traduzir a verdade dos fatos. Cada um, na prática, apresenta os acontecidos conforme a sua própria visão ou tendência política.

O partido do governo constroi uma realidade alternativa, em que Teresina é uma cidade próspera, em que o Piauí trilha os caminhos do desenvolvimento, em que a miséria existe mas não predomina "porque medidas são adotadas com vistas ao extermínio dessa precária e humilhante condição social de uma parte da população". Do outro lado, do lado da oposição, os fatos são tratados com exagero. Exagera-se na dose com que se relata a crueza dos dias para os menos favorecidos. Outra realidade alternativa, esta bem pior.

Quem olha para estes homens engravatados e trajando sempre a última moda; senhores que possuem na fisionomia o apelo da seriedade, quem olha para estes não imagina que sejam capazes de amenizar ou exagerar, mas é o que acontece. Uns amenizam, outros exageram; a realidade real só é vista e sentida por quem a vive, ou seja, o próprio povo, o cidadão comum, não raro chamado de "Zé Ninguém". Informação é poder, situação que não é, absolutamente, compartilhada com a maioria. Apenas uns poucos têm direito à informação verdadeira. Para a maioria, prevalece o que está escrito nas páginas do “Diário”.

O TEMIDO VILANOVA

1 – NO COMEÇO, O MEDO

A humanidade está sempre com medo de alguma coisa. No princípio, eram os raios e trovoadas que provocavam o sentimento de pavor entre os seres que estavam começando a adquirir racionalidade. E também a andar de forma ereta. Os animais selvagens também eram temidos, mas logo se percebeu que eles podiam ser domados ou abatidos. Inclusive, e principalmente, para servir de alimento. Mas não existe outro ser de que se tenha mais temor do que o homem pelo próprio homem.

No Piauí, o poder paralelo sempre existiu. Está acima do poder do estado. Provoca mais medo do que qualquer outra coisa, porque age motivada pela determinação em permanecer. Uma espécie de instinto de sobrevivência que sobrepuja todos os demais e submete toda a sociedade. Foi assim com Evilásio Gonçalves Vilanova, temido como chefe de polícia num estado policialesco. Mais temido ainda pelo mal que podia causar nos bastidores. No chamado submundo.

Evilásio Gonçalves Vilanova impôs o medo como ninguém porque foi para isso que veio. Para manter os piauienses sob controle. E não se preocupou em ferir e nem mesmo em matar, de acordo com denúncias dos seus desafetos. Eram muitos. Poucos tinham a coragem de colocar isso publicamente. Tornou-se a representação dos nossos maiores temores.

Não há reação possível quando não conseguimos interpretar os nossos sentimentos. Não há reação possível quando não compreendemos a extensão do medo que sentimos. Para nós, o medo sempre existiu. Mas não tinha rosto. Era apenas um nome. O poder. As elites. Dizia-se que as elites eram a representação do nosso pesadelo. Quem são as elites? São os homens do poder, do dinheiro; são os políticos, os grandes empresários, os mafiosos - as elites não têm rosto. O poder não tem fisionomia. Trata-se penas de uma denominação. Um nome que se confunde e dispersa a silenciosa ação da minoria, que oprime a silenciosa expectativa da maioria.

Evilásio Gonçalves Vilanova é natural de Caxias, no vizinho Estado do Maranhão, não sendo Teresina para ele uma cidade estranha. Passou parte da sua juventude frequentando a capital piauiense e desfrutando dos prazeres proporcionados pela rua Paissandu, onde travou inúmeras amizades com mulheres as mais belas.

Fez-se, em 1930, amigo de Landri Sales Gonçalves, com quem participou das revoluções de 1930, que levou Vargas ao poder, e de 1932, na qual os paulistas contestaram severamente a centralização de poder nas mãos do presidente. Por meio dele chegou ao poder no Piauí. Uma forma tão concentrada de mando que nem mesmo o interventor, em alguns momentos, tinha coragem de enfrentá-lo. Tudo teve origem na desordem em que Teresina se transformara. Na falta de organização do novo sistema de governo instituído com o Estado Novo. Não se sabia ao certo o que fazer e nem onde se queria chegar. Por isso toda sorte de arruaceiros passou a tomar conta da região periférica da capital. E começou também a avançar sobre o centro, iniciando pela região do meretrício, que naquele tempo era uma espécie de instituição desfrutada por todos. Do mais pobre ao mais rico. Um imenso parque de lazer sexual repleto de mulheres vindas de todas as partes do país.

Em entrevista ao cineasta Douglas Machado, o professor Camilo da Silveira, já falecido, relata que a rua Paissandu era frequentada pelos mais abastados. Políticos e grandes comerciantes. Ainda não havia o que hoje conhecemos como empresariado. Mas havia gente com muito dinheiro. Os homens começavam a chegar aos cabarés por volta das cinco da tarde. Somente assim conseguiam reservar as garotas mais bonitas para lhes fazer companhia durante a noitada, que geralmente se estendia até nove horas. Dali em diante, andar pela rua, mesmo de automóvel, era uma temeridade por conta do toque de recolher.

O cabaré mais famoso da Paissandu era aquele pertencente à Rosa Banco. Um verdadeiro colírio para os olhos de homens maduros e enfastiados na companhia, por vários anos, de suas esposas. Eles não as trocariam por mulheres da vida. Mas gostavam de aproveitar a oportunidade para se deitar com profissionais do sexo numa época em que ainda não se falava de aids e que a principal doença decorrente da relação sexual era a famosa "crista de galo".

Os cabarés se tornavam ponto de convívio para os homens da elite política e econômica da cidade. Mesmo os adversários se encontravam e até onde possível se confraternizam. Porém mesmo naquele ambiente de luxo e depravação alguns se desentendiam. Os desentendimentos ocorriam na disputa pela companhia das raparigas mais bonitas e fogosas. Para suas mulheres, que os esperavam em casa, diziam estar em reuniões secretas com partidários políticos (na época não era permitida a organização de partidos nem encontros políticos) ou então em mesas de jogo, outra das grandes diversões então existentes. Pode ser que suas esposas desconfiassem da verdade. Mas o homem da casa nunca era questionado. Nunca mesmo.

Os cabarés dos menos favorecidos (operários, lavradores, vaqueiros) situavam-se na margem do rio. Eram geralmente casebres rústicos, construídos de madeira e palha, e abrigavam mulheres já consumidas pelos anos de uso constante, mais velhas, que não encontrariam espaço nos lupanares da rua Paissandu. Ali se registravam muitas brigas, mortes por esfaqueamento e sempre que isso acontecia a rota de fuga para a maioria sempre era o rio Parnaíba. Daí a denominação de "Cai Nágua" para alguns destes ambientes furtivos da maioria empobrecida.

Rota de passagem para o norte do país, Teresina concentrava muita gente rude que estava indo para a Amazônia em busca de emprego na extração do látex. Estas pessoas provocavam muitas brigas no baixo meretrício. A cidade se transformou completamente e isso, em parte, motivou a convocação de um chefe de polícia que fosse duro o bastante para evitar que estes confrontos se estendessem até a Paissandu e atingissem os cabarés frequentados pelos ricos. Inclusive o próprio interventor seria usuário contumaz desse tipo de serviço, mas não se dava ao requinte de aparecer nos ambientes. Ele mantinha um espaço reservado em outro local do centro para onde requisitava as mulheres mais jovens e bonitas para seu usufruto e do secretariado mais próximo. Mas esta é uma parte de que nos ocuparemos oportunamente.

Evilásio Gonçalves Vilanova é natural de Caxias, no vizinho Estado do Maranhão, não sendo Teresina para ele uma cidade estranha. Passou parte da sua juventude frequentando a capital piauiense e desfrutando dos prazeres proporcionados pela rua Paissandu, onde travou inúmeras amizades com mulheres as mais belas e com alguns rapazes também.

2 - CIDADE INSEGURA

Ao tomar posse, Leônidas de Castro Melo percebeu, de imediato, a necessidade de fazer frente a dois grandes problemas que haviam em Teresina: a precariedade da infraestrutura e saneamento básico, que por sua vez acarretavam graves problemas de saúde na população, e a insegurança decorrente da presença cada vez maior de forasteiros. Eram comuns os distúrbios, especialmente na área do baixo meretrício, na margem do Parnaíba. As brigas explodiam a todo instante, envolvendo filhos da terra contra forasteiros na disputa pelo aconchego das mulheres da vida.

A praça Pedro II, palco da inquietação cultural e social da época, registra um acontecimento da maior significação para a tomada de providências por parte da Interventoria no aspecto da segurança pública. Um conflito do qual tomaram parte soldados da Guarnição Federal e da Polícia Militar colocou em polvorosa as famílias presentes àquele logradouro.

A parte baixa, como sabemos, é utilizada para o passeio dos rapazes e moças da fina flor da sociedade da Chapada do Corisco, ao passo em que, na parte baixa, ficam as empregadas domésticas, operários da Fábrica de Fiação e Tecidos e soldados da polícia e do 25º Batalhão de Caçadores. Há uma rua que corta a praça em diagonal e que além da divisão espacial é também marco da segregação dos menos favorecidos.

De repente, os soldados iniciam uma discussão que logo evolui para o confronto físico. A confusão se espalha na parte baixa da praça, levando os chamados filhos da elite a se queixarem da insegurança aos seus pais, que por sua vez fizeram eco das lamúrias às autoridades. Fazia-se necessário um plano de segurança para a cidade, ainda mais quando nos dias seguintes os distúrbios persistiram, avançando para a periferia e deixando toda a população inquieta.

A cidade, finalmente, perdera sua inocência...

Leônidas Melo procurou seu antigo benfeitor, o militar Landri Sales, que mesmo não desfrutando mais da confiança do Estado Novo, funcionava como conselheiro do interventor piauiense. Expôs a preocupação com a insegurança reinante e pediu aconselhamento. “Que medidas devo adotar? O senhor é militar, seguramente sabe como agir em situações extremas.”

Landri governou o Piauí numa época difícil. No primeiro momento, houve grande resistência ao modelo implantado por Vargas a partir de 1930. Nomeado interventor em 7 de maio de 1931, assumiu em 21 de maio daquele mesmo ano e aqui encontrou muita insatisfação por parte das elites econômicas e políticas.

Entre as primeiras ações como governante, cuidou em pacificar as famílias, no que, acredita-se, foi bem sucedido. Promoveu a reforma do Poder Judiciário, a construção de prédios escolares, dentre os quais o Liceu Piauiense, contribuindo ainda para a moralização administrativa.

Landri elogia a iniciativa de Leônidas, que fora secretário-geral do seu governo em construir o Hospital Getúlio Vargas, e afirma que tem a solução para o problema da segurança pública. Estava falando de Evilásio Gonçalves Vilanova, jovem capitão do Exército, figura impiedosa para quem o militar deveria agir como a natureza, de forma impiedosa, reagindo com força ainda maior que a manifestada pelo agressor, em local imprevisível e sem considerar quem fora responsável; todos pagariam, até se manifestar o verdadeiro culpado.

Leônidas ficou satisfeito com a indicação e autorizou Landri a levar ao ministro Eurico Dutra o pedido da disposição de Vilanova para assumir a Chefatura de Polícia de Teresina e o comando da Polícia Militar do Piauí.

Evilásio Gonçalves Vilanova estava servindo na Guarnição Federal do Rio de Janeiro quando recebeu a determinação de Eurico Dutra para vir a Teresina, viagem empreendida através de São Luís, capital do Maranhão, pelo Atlântico. Pegou, em seguida, um trem para a cidade maranhense de Flores, fazendo a travessia para a capital piauiense de barco.

A família do novo homem forte da segurança causou excelente impressão na cidade. A mulher, Nadir, foi comparada a uma atriz do cinema norte-americano, tal a sua elegência. A filha do casal, Marísia, era igualmente bela e, apesar da pouca idade, elegante.

Vilanova, por sua vez, impunha respeito pela altivez. Vestia-se bem e dançava como poucos. Gostava de bons vinhos, de boa música e de boas companhias. Não tarda em impor um estilo adquirido no campo de batalha, onde matar ou morrer tem importância menor do que o objetivo a ser alcançado.

3 - AUMENTO DO EFETIVO

O comandante ampliou as instalações do Quartel da Polícia Militar, em frente à praça Pedro II, ali instalando oficinas de alfaiataria, marcenaria e sapataria, tornando obrigatórios os exercícios físicos diários para os membros da corporação. Criou a banda de música para acompanhar as solenidades oficiais e dois novos batalhões, o de Cavalaria e o de Bombeiros. A Polícia Civil, que antes era abrigada em ridículas condições, ganhou novas instalações que compreendiam um quarteirão inteiro.

Vilanova ampliou o efetivo da polícia e adquiriu um carro para transporte de presos apelidado de “Carinhosa” pelo próprio. O interventor ficou por demais empolgado com a dinâmica atuação do seu chefe de polícia e oferecia todas as condições por ele solicitadas.

No princípio da década de 1940, a capital conta com poucas ruas efetivamente calçadas. O calçamento vai apenas da rua Paissandu à rua da Glória, não obstante o esforço empreendido pelo prefeito Lindolfo do Rêgo Monteiro.

O Instituto de Identificação, criado em 1928, funciona precariamente. Há apenas duas mil e setecentas pessoas devidamente identificadas em Teresina de uma população de aproximadamente 105 mil habitantes. O Instituto de Medicina Legal atende também o Maranhão.

Nas ruas, a cavalaria impunha respeito, patrulhando principalmente à noite. Os excessos logo se fizeram sentir. Os “cavaleiros de Vilanova”, como eram chamados, produziram abusos de toda ordem. Na periferia, espancavam cruelmente com as espadas de que dispunham. Faziam isso, conforme argumentavam, para dispersar ajuntamentos e confusões. Durante uma perseguição a criminosos, os cavalos atropelaram e mataram uma velha senhora. A população, ao ouvir o som das ferraduras, dizia em tom de chacota: “Lá vem a velha...”

Os policiais, de forma truculenta, chegam brandindo seus sabres, numa demonstração de força bastante comum na periferia. As espadas são usadas com muita freqüência no lombo dos pobres, durante escaramuças registradas nos subúrbios. Em bairros onde só se pode entrar de cavalo, porque não há calçamento, sequer rua, e onde os esgotos a céu aberto formam verdadeiras lagoas de imundície. Nenhum cristão em sã consciência e por melhor calçado que esteja se encoraja a pôr os pés naquela porcaria. A cavalo, a polícia entra e dispersa as confusões, os atritos ali verificados, geralmente briga de bêbados em cabarés imundos.

O ESTADO NOVO NO PIAUÍ - FLAGRANTE CONTRADIÇÃO

O Piauí dos anos 1940 vive em flagrante contradição. Alia subdesenvolvimento econômico e social ao progresso em termos de realizações físicas. Não se tem liberdade de expressão. A polícia funciona como verdadeira máquina de repressão do sistema. O Exército, por sua vez, oferece apoio à ditadura de Getúlio Vargas. Apesar do regime de exceção, são muitos os avanços em termos institucionais, como a promulgação da nova Constituição, a implantação da Lei Orgânica dos Municípios e da Lei de Organização Judiciária. Foram também realizadas obras de saúde, educação e infraestrutura com a construção do Hospital Getúlio Vargas, a abertura de inúmeras estradas e a conclusão do edifício do Liceu Piauiense (Colégio Estadual Zacarias de Goes).

No âmbito cultural, registre-se a construção da Casa Anísio Brito (Biblitoeca, Museu e Arquivo do Estado, organizada pelo historiador Anísio Brito), e o incentivo às letras com a publicação de obras literárias por conta do Estado. Em Teresina, estão sendo construídos o Hotel Piauí e a cidade ganha novos ares com a arborização de praças, ruas e avenidas.

Não há liberdade de informação. Qualquer crítica ao sistema através da imprensa era prontamente silenciada. Constantemente, escritores e jornalistas eram encarcerados nos porões do Quartel da PM. Um deles, Cunha e Silva, narra as humilhações que lhe foram impostas pelo regime ditatorial. “Foram dias terríveis, de humilhações e privação”, relata. Impedido de exercer a profissão, chegou a passar fome com a família.

Os jornais limitam-se ao registro de eventos cívicos, fatos políticos de interesse do governo ou anúncios publicitários. As atividades jornalísticas limitam-se à rotina devido à rigorosa censura imposta a todos os meios de divulgação. Ninguém ousa contrariar a ditadura. Daí a dificuldade dos atuais pesquisadores em conseguirem informações sobre aquele período.
Circulam os seguintes periódicos: Jornal do IAPC (1938); Revista da Associação Piauiense de Medicina, órgão da sociedade do mesmo nome (1939); A Voz do Estudante, órgão do Grêmio Literário Da Costa e Silva, do Colégio Leão XIII (1943); Zodíaco, órgão do Grêmio Cultural Lima Rebêlo (1943); Língua de Sogra, produzido por A. Tito Filho com a colaboração de Petrarca Sá e Tibério Nunes (1943); Geração (1945).

O famigerado DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) é o meio pelo qual o Estado Novo censuva as notícias que não podiam sair na imprensa. No Piauí, há o DEIP, aliado à tenebrosa ação do coronel Evilásio e sua temível força policial. O departamento de censura lança sua sombra sobre o Estado através da força policial, que mantém centenas de informantes secretos infiltrados entre as classes populares, do que muito se orgulha o coronel Evilásio.

2 - INDIGNAÇÃO REPRIMIDA

Foi em clima de indignação reprimida que o Piauí recebeu, em 24 de abril de 1942, a visita do Ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra. Ele foi homenageado com um banquete no Theatro 4 de Setembro. O interventor Leônidas Melo se pronunciou manifestando irrestrito apoio ao regime de Vargas. A presença do ministro em território piauiense fez ampliar as proclamações favoráveis à participação do Brasil e, consequentemente, do Piauí no conflito. O governo brasileiro ainda mantinha neutralidade irritante. Para aqueles que estavam fartos da ditadura e suas temíveis implicações, nada melhor do que participar da campanha contra o Eixo. Aquilo poderia despertar na maioria da população o desejo de liberdade que emanava da maior democracia do planeta, representada pelos Estados Unidos.

O desembargador Simplício Mendes de Souza era um deles. Articulista da imprensa teresinense, costuma associar a participação do Brasil no conflito a uma ruptura com o modelo centralizador de Vargas. “Os ventos que sopram de fora, principalmente da Inglaterra e dos Estados Unidos, são ventos de liberdade. De quem está lutando pela liberdade porque convive com a liberdade. De quem combate a opressão por vivenciar a democracia em seu estado pleno. Acreditamos que a participação do nosso país neste conflito de proporções mundiais servirá para municiar nossa gente por inteiro do sentimento de libertação, que é algo com que não estamos acostumados a conviver”, escreveu, pouco depois da visita do ministro.

Os americanos já estavam utilizando o território brasileiro para instalação de bases militares. Após a visita de Dutra, os militares passaram a ser ainda mais cortejados pelas autoridades piauienses. O coronel Evilásio Vilanova, comandante da Polícia Militar, foi homenageado no dia 7 de maio do mesmo ano, também no Theatro 4 de Setembro, com saudação do prefeito Lindolfo Monteiro. Detinha, portanto, um poder quase que absoluto, somente comparado ao poder do interventor, e mesmo assim muitos entendiam que ele tinha ainda mais força do que Leônidas. Sim, porque o interventor o deixava agir à vontade.