domingo, 25 de abril de 2010

CINTURÃO DE FOGO - TERESINA SITIADA PELOS INCÊNDIOS

1 - CHAPADA DA TRAGÉDIA

Meio-dia. De repente, a calmaria de Teresina é preenchida por gritos desesperados e a presença incômoda da fumaça preta que sobe em direção ao céu azul.

Os sinos tocam freneticamente, sinal de alerta na chapada da miséria. Mais uma casa de palha pegando fogo, mais uma família desabrigada e quem sabe mais um sem número de mortos. O calor e o vento ajudam a propagar o incêndio. Em poucos minutos não restará absolutamente nada do casebre atingido. Todos se unem no esforço em favor das vítimas dos incêndios. De nada adianta. Aumenta a cada dia o clamor popular. Os incêndios se repetem quase sempre na mesma hora diariamente. Os sinos da igreja tocam. A população já sabe o que está acontecendo... Casas de palha queimadas, famílias desabrigadas.

Dezenas de obras literárias e trabalhos científicos refletem sobre o tema, numa prova do enorme drama em que os incêndios se constituíram para os moradores da capital. O assunto marcou de forma tão indelével a vida da população que até hoje é lembrado com muita tristeza e utilizado por estudiosos para justificar o caráter oposicionista do teresinense. "A população tem pavor do governo por causa do enfrentamento verificado nos anos 40. Qualquer candidato de oposição leva a melhor em Teresina, que se caracteriza como uma cidade irredenta", diz o escritor Manoel Paulo Nunes, professor universitário aposentado e presidente do Conselho Estadual de Cultura.

Teresina convive com casas de palha desde os seus primórdios. Saraiva, ao fundar a cidade em 1852, instalou a Tesouraria Provincial numa construção de palha. As tropas federais se acomodaram primeiro num barracão coberto de palha. Durante a construção da cidade ergueram-se barracões provisórios para a guarda do material e abrigo de pedreiros, carpinteiros, ajudantes, escravos e militares. As choças eram feitas de pau a pique e taipa, com paredes de varas entrecruzadas e barro que tapava os espaços, servindo de reboco. Mesmo as casas de adobo recebiam cobertura de palha.

Existência de grande concentração de babaçu nas margens do rio Parnaíba fornecia a matéria-prima necessária para as primitivas habitações da capital. Além da oferta em larga escala, a palha do babaçu tem a propriedade de amenizar o clima úmido e quente da região.

Na condição de primeira capital planejada do Brasil, Teresina conta inicialmente com grande número de funcionários públicos e autoridades políticas, residentes em casas de melhores condições, mas as casas de tijolos cobertas de telhas não eram suficientes para abrigar a grande quantidade de operários, comerciantes e forasteiros atraídos pela oportunidade em mudar de vida. No final do século 19, uma grande seca se abateu sobre o Nordeste.

Do agreste piauiense e cearense, centenas de milhares de pessoas acorrem para Teresina em busca da proteção social oferecida pelo governo e de um canto para fixar moradia. Surgem com isso inúmeras casas de palha na periferia, de forma desordenada. Não havia nenhuma regra para a construção. As pessoas chegavam, erguiam seus barracos de paredes e cobertura de palha. Moradias que se interligavam e se entrelaçavam, tão próximas umas das outras que muitas vezes não dava para a passagem de uma pessoa.

O Plano Saraiva previu a instalação da área urbana num quadrilátero que vai, em sentido norte a sul, do Largo do Liceu à praça Saraiva, e de leste a oeste, do Alto da Moderação, onde mais tarde seria construída a Igreja de São Benedito, ao Largo da Bandeira, onde fincou-se o marco de fundação. No primeiro século de existência, Teresina sempre possuiu mais casas de palha do que de telha. Havia uma lei provincial com o fim de evitar a superpopulação da cidade. Por isso, era proibido construir-se casas de palha no perímetro central. Os casebres miseráveis se expandiram em direção à periferia. Mas isso não impedia que coexistissem com as construções de alvenaria.

Percebendo a extensão do problema e a dificuldade que traria no futuro próximo, um deputado chamado David Moreira Caldas apresentou na Assembléia Provincial um projeto de lei estabelecendo que anualmente o governo deveria destinar a importância de dois contos de réis para a substituição progressiva das moradas com a cobertura rústica por telheiros. A proposta, é claro, não obteve aprovação. O poder público não dispunha de tanto dinheiro. Por outro lado, até mesmo o governo instalava órgãos públicos em barracões improvisados com aquela cobertura. As tais casinhas não eram atributo exclusivo da pobreza. Mesmo quem tinha algum dinheiro possuía também os seus casebres, com o fim de alugá-los para quem não tinha. Assim, muitos “conjuntos” residenciais da periferia pertenciam às famílias abastadas da capital.

De acordo com levantamento realizado pela Interventoria, há quatro mil casas de alvenaria contra 12 mil e 700 de palha. Algum gênio da burocracia local mandou que, ao invés de casas de palha, estas fossem registradas como de madeira, muito provavelmente com receio da imagem que aquele resultado fosse produzir fora do Piauí.

2 - A POPULAÇÃO MIGRANTE

A maioria dos moradores da periferia é migrante. Eles vêm das mais diferentes cidades e localidades rurais do Piauí e até de outros Estados, como Ceará, Maranhão e Pará. Chegam pela Rua dos Viajantes, ou pela estrada federal que situa-se além do rio Poti. Para alguns, a trajetória rumo ao próprio barraco inicia na casa de um amigo ou parente, até que consiga se desfazer completamente dos poucos bens deixados no meio rural ou nas cidades menores, de onde eles vêm. Para outros, o primeiro abrigo é debaixo de alguma árvore frondosa, onde armam sua trempe e estendem suas redes e esteiras, fazendo as necessidades em redor, nas imediações. Não há qualquer amparo social para estes desvalidos, quando muito a esmola de algum rico generoso ou a perseguição policial, esta mais em voga nos dias que correm.

Seu deslocamento é constante na busca de um espaço ideal para fixar-se. Tem como destino um lugar distante dos núcleos urbanos, porque não há programa de incentivo à habitação popular. As construções de alvenaria estão concentradas na cidade projetada um século e meio atrás, de área bastante limitada para a grande migração registrada a partir do início deste século XX. Nos primeiros anos, durante a gestão de Arlindo Francisco Nogueira, começaram os serviços de abastecimento d'água da capital. O sistema de iluminação seria implantado apenas uma década depois, na administração do governador Miguel de Paiva Rosa.

As pessoas querem morar em Teresina alegando que a cidade dispõe de melhores condições de infraestrutura e saneamento. Não sabem o que as espera até chegar à capital, onde deparam-se com uma verdadeira "cidade de palha", em que a média é de três casas de palha para uma de alvenaria. A migração explodiu a partir dos anos 20 com João Luiz Ferreira no poder. Político de rara projeção, engenheiro civil e consciente da necessidade de ligar Teresina a outros centros do país, iniciou o processo de construção de estradas de rodagem. Antes, eram apenas as veredas estreitas, ao longo das quais aglutinavam-se bandos de malfazejos à espera dos viajantes desavisados. A partir de então, os demais governantes ocuparam-se em ampliar a rede de rodovias estaduais.

Em 1941, começaram os incêndios. O cinturão de palha começou a pegar fogo, desabrigando e matando centenas de milhares de pessoas. No primeiro momento, os episódios dantescos eram atribuídos às altas temperaturas registradas em determinados períodos e à facilidade do material empregado nas construções rústicas para produzir a combustão. Não tardou para que o aspecto criminoso fosse introduzido.

Os incêndios começaram a gerar muita desordem na periferia, avançando tal situação para o centro das decisões políticas e administrativas. A repercussão tornou-se terrível para o interventor. Vilanova pediu verbas para a aquisição de carros para o Corpo de Bombeiros. Os veículos mal conseguiam adentrar as ruas esburacadas dos subúrbios.

Desde que os incêndios iniciaram toda a população de Teresina, independente da condição social, vivia em pânico. Podiam acontecer a qualquer momento, sinalizados primeiro pelos sinos da Igreja de São Benedito. Os sacerdotes haviam colocados vigias na torre para dar o sinal, agilizando assim o socorro às vítimas. Nem sempre ágil. As perdas resultavam enormes a cada nova ocorrência, porque a cidade era cercada por um cinturão de miséria e palha.

3 - O DRAMA DE LEÔNIDAS

Desde que os incêndios iniciaram, alguns anos antes, que a vida de Leônidas se transformara num verdadeiro inferno. Literalmente falando. Uma carreira que se projetava como grandiosa, fruto de uma vivência difícil, a partir de Barras, terra natal do interventor, passando pelos estudos, pela superação das dificuldades, até firmar-se na medicina e na política e ser escolhido pelo ditador em pessoa para exercer a mais alta função pública no Estado do Piauí.

Na verdade, uma província, a representação em estado pleno do modelo colonialista português. Onde o poder público, em todos os seus níveis e instâncias, existe unicamente para atender os interesses de uns poucos em detrimento da grande maioria. Uma província em que apenas algumas famílias detinham todo o controle sobre a política e os destinos de milhares de outras famílias, concedendo-lhes esmolas e criando, desde sempre, um ajuntamento enorme de miseráveis e um vício nestes que não lhes permitia qualquer possibilidade de ascensão social.

Teresina reflete esse caos social na década de quarenta. Uma cidade de pouco mais de setenta mil habitantes em que mais da metade habita casebres de palha que formam um verdadeiro cinturão de miséria em torno da ilha de prosperidade que é a avenida Getúlio Vargas. Os mais ricos já se aventuravam em morar em chácaras para além do rio Poti, mas a travessia era sempre dificultosa. Mesmo assim, faziam questão de se distanciar cada vez mais daquela plebe fedida e carente de tudo. Diariamente, nas portas das famílias mais abastadas, amanheciam de vinte a trinta pessoas. Em tempo de política esse número era bem maior. Agenor, como poucos, conhece as carências do povo da capital. Médico, de família influente e abastada, esforça-se para atender tantos apelos. Alimento, roupas, assistência de saúde; eram tantos os pedidos que não teria como listá-los assim de memória.

A redoma de pobreza no entorno de Teresina avança sobre a “nobreza”. A cada ano, os casebres imundos tornam-se mais próximos, infestando a planejada urbe de Saraiva. Da rua Paissandu à rua da Glória, no sentido sul-norte; das escadarias da Igreja de São Benedito, passando pelo centro de poder político e econômico até chegar na beira do rio. No começo, apenas respingos. Com o passar do tempo, procriavam como roedores. Novas casinhas, muito mais gente sem emprego e sem oportunidade, nada de água ou esgoto, nada de luz elétrica e nem mesmo um mobiliário decente. O que fazer? Proíbe-se a construção das casinhas no centro. Proliferam agora no entorno, no “cinturão de miséria, palha e fogo”.

Natural da simpática cidade de Barras, a duzentos e poucos quilômetros da capital, Leônidas de Castro Melo fizera estudos preliminares na própria terra natal, transferindo-se adolescente para a capital. Em Teresina, fez o curso preparatório, obtendo sucesso e conseguindo se projetar pra uma vaga na concorrida Universidade do Brasil, no Rio, onde estudou medicina, retornando em seguida para o Piauí. Ministrou aulas ao mesmo tempo em que praticava a medicina, notabilizando-se de imediato como promissora liderança. Eleito membro do Conselho de Intendência Municipal, foi impedido de concluir o mandato pela Revolução de 1930, que cassou os mandatos de todos em todo o Brasil com o objetivo de produzir uma ruptura total com o passado.

Em 1933, no governo do interventor Landri Sales, foi indicado secretário-geral do Estado. Dois anos depois, obteve êxito na disputa indireta para o governo estadual. Em 1937, com a instauração do Estado Novo, ganhou poderes de interventor, com a missão de “humanizar” a política piauiense, realizando paralelamente a urbanização das principais cidades, em especial Teresina, que naquele tempo não era mais do que uma província, distante dos centros de decisão política da nação e repleta de ruas sem calçamento e casas de taipa e palha, sem nenhuma estrutura de abastecimento d’água e esgotamento sanitário.

Parecia-se, em quase tudo, com aqueles burgos medievais, em que as necessidades fisiológicas eram lançadas no meio da rua, juntando à água produzida pelas cozinhas residenciais e serpenteando a céu aberto, até esbarrar em algum organismo frágil e transformar-se em mais uma entre tantas doenças que martirizaram a maioria naqueles tempos. Na qualidade de médico, Leônidas conhecia muito bem a precariedade da saúde do teresinense. Conhecia suas causas e sabia das conseqüências funestas. Como governante, tinha a obrigação de adotar providências para estancar o processo.

Um comentário:

  1. Caro Toni, "Cinturão de Fogo" irá enriquecer a História do Piauí. Dentre outros esclarecimentos, fica a informação de que o deputado chamado David Moreira Caldas seria então o autor do primeiro Plano Estadual de Habitação, com o seu projeto de lei que destinava a importância de dois contos de réis para a substituição progressiva das moradas com a cobertura rústica por telheiros, caso a proposta tivesse obtido aprovação.

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