Agenor Barbosa de Almeida era um jovem médico, recém-formado na Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, e especializado em doenças tropicais, quando foi indicado, pelo interventor Landri Sales, para dirigir a Colônia Agrícola de David Caldas, então atingida por uma violenta epidemia de malária. Ele aceitou o desafio, mesmo conhecendo os riscos. Todos os profissionais de saúde indicados antes dele haviam renunciado ao cargo ou simplesmente recusado a proposta. Tinha que vencer a qualquer custo.
Em David Caldas, Agenor não apenas controlou a epidemia como projetou uma carreira política que o tornaria reconhecido e respeitado por toda a vida. Ao tomar posse, em 1935, o também médico Leônidas de Castro Melo convidou Agenor para ser o presidente do Instituto de Assistência Hospitalar (IAH), hoje equivalente à Secretaria de Estado da Saúde. Foi nessa condição que ele ajudou a implantar o Hospital Getúlio Vargas (HGV), em 1941, uma das maiores casas de saúde do país.
“Teresina era uma cidade pequena, onde havia um déficit muito grande de água canalizada, de energia elétrica e em que a maioria das ruas não tinha sequer calçamento”, relembra, aos 99 anos, o ex-prefeito e ex-deputado Agenor Barbosa de Almeida, precursor, juntamente com o intelectual alagoano Graciliano Ramos de um modelo até então inédito no país, a prestação de contas feita regularmente através de relatório ou veículo de comunicação.
Segundo Agenor, a precária infraestrutura de saneamento fazia com que a maioria da população da capital fosse periodicamente acometida por doenças, como a malária e outras. “Em bairros da periferia, as necessidades eram feitas no meio da rua, a água servida corria a céu aberto, espalhando inúmeras doenças. O Hospital Getúlio Vargas, muito criticado inicialmente, era uma necessidade.”
O médico residia nas proximidades da praça do Liceu (Landri Sales), que nos anos quarenta era um gigantesco barrocão no centro da cidade. O percurso entre a casa e o trabalho era feito à pé. Além de presidente do IAH, Agenor era também oficial-médico da Polícia Militar. “Fui o primeiro médico da polícia do Piauí”, proclama. Foi na condição de médico e oficial que ele aceitou, em 1943, o desafio de desmascarar o esquema de atrocidades patrocinado pelo coronel Evilásio Gonçalves Vilanova, o temido comandante da Polícia do Estado e que, mais tarde, foi apontado pelo Tribunal de Segurança Nacional como o responsável pelos incêndios que na época massacraram a maioria da população pobre de Teresina.
Época de muitas injustiças, Agenor se notabilizou como um defensor dos direitos humanos ao enfrentar o todo-poderoso comandante da Polícia Militar Evilásio Gonçalves Vilanova. É de sua autoria o relatório que aponta a prática da tortura nos porões de Vilanova e no qual padeceram centenas de infelizes, injustamente acusados pelos incêndios que devastavam as casas de palha nos bairros do entorno da cidade.
Em meados dos anos 1940, por conta da também injusta prisão de seu cunhado Clemente Pires Ferreira, Agenor Almeida rompeu com o interventor Leônidas Melo e retornou aos quadros da PM. A população de Teresina não lhe negou o reconhecimento devido.
Agenor Barbosa de Almeida esteve em Teresina em julho de 2006 para receber, em 4 daquele mês, a Medalha do Mérito Militar, da Polícia Militar, concedida pelo então comandante Edvaldo Marques “em reconhecimento aos relevantes serviços prestados pelo homenageado”.
A coragem para desafiar o improvável e o imponderável foi sempre uma constante na vida do político que começou a carreira, ainda na década de 1930, atendendo ao chamado do então interventor Landri Sales para conter a epidemia de malária que afetava a antiga Colônia Agrícola de David Caldas.
PRESTAÇÃO DE CONTAS
Em 1944, antes do fim do Estado Novo, Agenor rompeu com o interventor Leônidas Melo. Ele ficou indignado com o tratamento dado pela polícia ao seu cunhado, Clemente Pires Ferreira, fazendeiro campomaiorense e crítico do regime ditatorial. Em 1946, pela extinta União Democrática Nacional (UDN), disputou e venceu a eleição para a Assembléia, renovando seu mandato em 1950. No Legislativo, foi vice-presidente e presidente daquele Poder.
Agenor Barbosa de Almeida foi deputado estadual de 1947 a 1955. Na Assembléia, exerceu as funções de vice-presidente e presidente daquele Poder.
Em 1955, numa eleição acirrada, derrotou o seu colega médico Clidenor de Freitas, que era apoiado pelo então prefeito João Olympio de Melo. “Foi uma eleição duríssima, pois lutamos contra a máquina administrativa”, afirma. Ele diz que encontrou a prefeitura sucateada e para recuperá-la fez uso de um modelo ortodoxo para a época. Agenor instituiu um sistema diário de prestação de contas, veiculado pela Rádio Difusora de Teresina. “Todos os dias, por volta das 5 da tarde, apresentávamos ao povo de Teresina uma prestação de contas do quanto tínhamos recebido e do quanto tinha sido gasto. Era feito diariamente na Rádio Difusora. Mensalmente e anualmente encaminhávamos um relatório financeiro ao governo do estado. Informávamos o volume de recursos que entrava na prefeitura todos os dias e também o que era gasto”, enfatiza. “Ao fim, dávamos o saldo e dizíamos o número da conta em que os recursos estavam depositados, na agência do Banco do Brasil.”
Os boletins diários de Agenor Barbosa de Almeida, na condição de prefeito, podem ser encontrados no Arquivo Público do Estado. Em 2001, ou seja, quase cinquenta anos depois, a presidência da República tomaria tal procedimento, entre outros, para implantar a Lei de Responsabilidade Fiscal.
EMBATES POLÍTICOS
Em 1959, decidiu tentar um vôo mais alto na política e candidatou-se a vice-governador na chapa encabeçada pelo professor José Gayoso, o “Dedé Gayoso”, e a disputa estava praticamente definida em favor deles quando uma tragédia mudaria os rumos da sucessão. À altura do município de Demerval Lobão, um acidente automobilístico tiraria a vida dos candidatos adversários Demerval Lobão Veras (governo) e Marcos Santos Parente (senado), provocando uma comoção geral entre os eleitores.
Após a derrota, ele, um homem de vitórias, decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro, onde permanece até os dias de hoje, morador da rua Francisco Otaviano. Detentor de vasto círculo de amizades, foi nomeado diretor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) durante o curto governo Jânio Quadros, em 1961, ao fim do que passou a dedicar-se exclusivamente à medicina e à família. Indagado sobre a fórmula da juventude, responde com simplicidade: “Tenho uma vida equilibrada e caminho sempre à beira-mar.”
O jovem deputado federal Chagas Rodrigues foi chamado para encabeçar a chapa ao governo pelo PTB e se elegeu facilmente. Após a derrota, Agenor passou a residir no Rio de Janeiro, onde decidiu à profissão. Mais tarde, foi nomeado pelo então presidente Jânio Quadros para dirigir o Instituto Brasileiro do Sal, onde permaneceu até a sua destituição.
“Teresina é uma cidade que permanece em mim, apesar da distância, porque o lugar em que a gente mora é uma imposição do destino. Desejo que a cidade cresça, amadureça bela e única como sempre foi”, pontifica.
DIREITOS HUMANOS
O movimento pela defesa dos direitos humanos consolida-se em todo o mundo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. O texto, adotado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 10 de dezembro de 1948, estabelece os direitos naturais de qualquer ser humano, independentemente de nacionalidade, cor, sexo, orientação religiosa, política ou sexual. Destacam-se o direito à vida, à igualdade perante a lei e à liberdade. A Declaração condena a tortura e a escravidão.
Nos últimos 50 anos, várias convenções e tratados têm sido elaborados para garantir esses princípios, como a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura. Em 1993, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, Áustria, reafirma a Declaração e propõe aos países-membros da ONU a implantação de planos nacionais de direitos humanos.
Apesar de não constituir uma lei, os princípios da Declaração fazem parte da Constituição da maioria dos países, norteiam boa parcela das decisões tomadas pela comunidade internacional e servem como referência para o exercício da cidadania. Mesmo assim, em pleno século XXI, muitos direitos continuam a ser transgredidos.
Diante deste breve relato, é possível de se imaginar o que acontecia no Piauí naquela distante década de 1940, em que a defesa dos direitos era algo que não fazia o menor sentido - nem para autoridades, muito menos para populares. Com sua atitude em assinar um simples laudo médico atestando como causa mortis de um detento a tortura aplicada contra ele nos porões da ditadura varguista em nosso estado, ele foi extretamente corajoso e audacioso, além de antecipar em vários anos a luta em defesa dos direitos humanos.
Claro que houve a participação de Leônidas. Não poderia ser diferente. Um era governante, o outro auxiliar. Os dois serviam ao mesmo regime - embora, cada qual ao seu modo, tivessem procedimentos bem diferentes daqueles adotados pelo chefe militar. Eram humanistas, afinal. O Juramento de Hipócrates os tornava defensores da continuidade humana.
Numa das entrevistas ao autor, Agenor faz esforço de memória para relembrar o instante preciso em que o interventor falou de suas aflições ante os incêndios e no qual também pediu a sua colaboração.
***
O governo vive um momento decisivo. Desde 1939 que os incêndios vinham ocorrendo (acentuando-se a partir de 1941), sempre nos meses mais quentes do ano, mas agora neste verão de 1943 haviam se intensificado. Havia muita especulação por toda a cidade, ao ponto de se transformar em escândalo político. O médico José Cândido Ferraz acusava o governo de doutor Leônidas. Segundo ele, trata-se de uma política de Estado no sentido de retirar as famílias pobres do centro, favorecendo assim a urbanização imposta pelo ditador Getúlio Vargas.
“A urbanização de Teresina não pode ser feita a qualquer custo”, pondera José Cândido, “principalmente ao custo de vidas humanas. Quantas milhares de famílias precisarão ser expulsas de suas casas dessa maneira brutal? Quantos deverão ser mortos sob o fogo infernal para que haja sensibilização por parte do interventor Leônidas de Castro Melo. Ele não age, senhoras e senhoras, porque é o próprio autor de tão horrendo crime. Ele não toma providência alguma porque a determinação parte dele próprio, que não está nem um pouco preocupado com o sofrimento da nossa gente, desde que atenda a determinação da ditadura a que serve”.
Aquelas palavras calaram fundo no sentimento do doutor Leônidas, logo ele, um homem honrado, um político civilizado, que sempre abriu as portas do palácio para todas as classes e que nunca patrocinou qualquer tipo de perseguição aos seus adversários, por mais intensos que sejam os ataques. “Somos cidadãos civilizados”, reage Leônidas Melo. “A política não deve ser a arte do ataque, da agressão verbal. Deve ser a arte da convivência, do diálogo. Precisamos mobilizar as forças cívicas do Estado em prol do seu desenvolvimento e não será com ataques gratuitos à honra do governante que chegaremos ao ponto em que desejamos”.
Leônidas estava visivelmente indignado, mas como sempre mantinha a compostura. Para ele, o pior de tudo era não perder a civilidade, muito embora a política o tenha obrigado a tomar determinadas atitudes que, como médico, jamais tomaria. Natural da simpática cidade de Barras, a duzentos e poucos quilômetros da capital, fizera estudos preliminares na própria terra natal, transferindo-se adolescente para a capital.
Em Teresina, fez o curso preparatório, obtendo sucesso e conseguindo se projetar pra uma vaga na concorrida Universidade do Brasil, no Rio, onde estudou medicina, retornando em seguida para o Piauí. Ministrou aulas ao mesmo tempo em que praticava a medicina, notabilizando-se de imediato como promissora liderança. Eleito membro do Conselho de Intendência Municipal, foi impedido de concluir o mandato pela Revolução de 1930, que cassou os mandatos de todos em todo o Brasil com o objetivo de produzir uma ruptura total com o passado.
Em 1933, no governo do interventor Landri Sales, foi indicado secretário-geral do Estado. Dois anos depois, obteve êxito na disputa indireta para o governo estadual. Em 1937, com a instauração do Estado Novo, ganhou poderes de interventor, com a missão de “humanizar” a política piauiense, realizando paralelamente a urbanização das principais cidades, em especial Teresina, que naquele tempo não era mais do que uma província, distante dos centros de decisão política da nação e repleta de ruas sem calçamento e casas de taipa e palha, sem nenhuma estrutura de abastecimento d’água e esgotamento sanitário.
Parecia-se, em quase tudo, com aqueles burgos medievais, em que as necessidades fisiológicas eram lançadas no meio da rua, juntando à água produzida pelas cozinhas residenciais e serpenteando a céu aberto, até esbarrar em algum organismo frágil e transformar-se em mais uma entre tantas doenças que martirizaram a maioria naqueles tempos. Na qualidade de médico, Leônidas conhecia muito bem a precariedade da saúde do teresinense. Conhecia suas causas e sabia das conseqüências funestas. Como governante, tinha a obrigação de adotar providências para estancar o processo.
“Estamos fazendo a urbanização, Agenor, mas não ao preço de vidas humanas, não ao custo de que nos acusam”, disse, de repente, parando diante de uma tela retratando Antônio José Saraiva. “Sabe que na condição de humanista não posso me dar ao luxo de me deixar levar pelas provocações dessa gente. Creio que temos a missão bem parecida com a do conselheiro, que construiu a nossa capital sob uma severa oposição. Ele soube manter a altivez, enfrentou o bairrismo dos oeirenses, foi chamado de ‘fedelho’, ameaçado e quem sabe quantas noites passou em claro! Eis aqui Teresina, primeira capital projetada do país...”
Fez silêncio. Agenor queria realmente saber o motivo daquele chamado no meio da noite. “Sei que está passando por um momento difícil, doutor Leônidas. Conheço suas intenções e sua dedicação à causa pública”, comentou.
“Sabe, seguramente, que não seria capaz de tocar fogo em nenhuma casa, não é, Agenor?
“Claro, interventor, somos médicos, salvamos vidas. É nosso compromisso.”
Leônidas respirou aliviado, como se estivesse esperando uma resposta diferente. “Ainda bem, meu amigo, porque preciso muito de você, dos seus préstimos como homem público e como profissional de saúde”, falou. “Sei que já está fazendo bem mais do que a nossa precária condição permite. O ‘Getúlio Vargas’ é um hoje um hospital de referência na região Nordeste e em poucos anos será um dos maiores e melhores de todo o Brasil. Acredito sinceramente nisso. Devemos isso a você, o povo do Piauí deve isso a você, à sua capacidade como administrador.”
“Estou aqui para servi-lo, governador, e ao povo do meu Estado”.
Havia sinceridade nas palavras de Agenor Almeida.
“Pois então quero lhe pedir mais uma coisa...”
***
Agenor foi perseguido por Vilanova antes, durante e depois das investigações. O objetivo era claro: fazê-lo parar. O médico não parou, deu seguimento às investigações e apresentou ao interventor um relatório detalhado de toda a situação. “Ali encontrei presos maltratados, sujeitos a todo tipo de sofrimento”, disse ao autor destas linhas em dezembro de 2005. “Mas também ficamos convencidos de que o doutor Leônidas não tinha conhecimento do que ocorriam nas masmorras de Vilanova. Era um quadro deprimente, lamentável, terrível; em que centenas de homens comuns, cidadãos do povo, cujo crime era serem pobres, foram levados para interrogatório e depois trancafiados e espancados como bandidos, numa brutal agressão aos seus mais elementares direitos, seja como seres humanos, seja como cidadãos vivendo sob um regime institucional.”
Segundo ele, em regimes ditatoriais punem-se os crimes políticos. É assim que muitos perdem os seus direitos. Mas mesmo a ditadura não subtrai direitos e garantias ao cidadão comum, que nenhuma ameaça representa ao regime. Não havia razões para tantas prisões a não ser a ira do chefe de polícia, que a todo custo queria incriminar o interventor, mostrando-o fraco perante o governo federal, ao mesmo tempo em que ganhava pontos firmando-se como o herói que identificara e punira os incendiários, livrando o povo de tamanho tormento.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
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