quarta-feira, 28 de julho de 2010

TORTURA, MORTE E RESPONSABILIDADES

Em 1944, o Tribunal de Segurança Nacional responsabilizou a polícia pelos acontecimentos sinistros. Os incêndios, as torturas e as mortes tornaram-se marca registrada do governo de Leônidas de Castro Melo. O coronel Evilásio Gonçalves Vilanova foi diretamente responsabilizado na condição de comandante das forças policiais.

Os incêndios foram transformados em motivo para embates políticos, sendo responsabilizado pelas autoridades estaduais, inicialmente, o conhecido e admirado médico José Cândido Ferraz, procedente de família tradicional da cidade e que tinha verdadeiro desprezo pelo governo. Era dos poucos que ousava falar publicamente contra o interventor e sua polícia, razão pela qual passou a ser alvo de investidas constantes de Vilanova e do próprio Leônidas, que por muitos era tido como homem de espírito manso e cordato. Nem tanto.

A autoria dos incêndios foi mantida em sigilo por conta de interesses políticos. Não da oposição ou situação, porque nunca tivemos por aqui nenhum movimento político organizado ideologicamente. Há grupos que se organizam partidariamente para chegar ao poder e, lá chegando, subvertem e cooptam os adversários. É assim que ganham força para se preservar no topo.

Na época dos incêndios houve muito clamor popular. O próprio Estado Novo, através do Tribunal de Segurança Nacional, apontou a polícia e seu comandante, coronel Evilásio Gonçalves Vilanova, como responsável. Mas se você perguntar hoje quem foi o culpado, as pessoas lhe dirão simplesmente que persistem dúvidas, que a autoria nunca foi definida. Não é verdade. O grande culpado tem nome. Chama-se Evilásio Gonçalves Vilanova. Ele agiu em nome do Estado Novo, utilizando toda a estrutura da polícia contra os pobres que, em redor da capital, formaram um cinturão de palha com suas casinhas miseráveis e sem qualquer chance.

A instituição policial, criada para garantir a segurança da sociedade, terminou se transformando em poderosa aliada da classe dominante. Morar em casa de palha não era, naquele tempo, sinônimo de pobreza. Grande parte da população, mesmo membros da elite, residia em casas de palha. Era uma forma de conviver com as altas temperaturas registradas na capital.

No entanto, os incêndios atingiam apenas as casas localizadas na periferia, em bairros como Cajueiro, Vermelha, Piçarra, Monte Castelo, Mafuá e Matinha. A oposição culpava o governo. O governo culpava a oposição. Havia, contudo, uma determinação do Estado Novo: os centros urbanos deveriam ser modernizados. As casas de palha em nada condiziam com essa perspectiva de modernidade. Os incêndios se transformaram em fato político. O médico José Cândido Ferraz denunciava que eram provocados por gente do governo de Leônidas de Castro Melo para garantir a “limpeza” da área urbana de Teresina, favorecendo a construção de novos e modernos prédios.

Leônidas, que parecia não saber de nada, determinou ao chefe de polícia Evilásio Gonçalves Vilanova, empossado em 20 de outubro de 1941, que encontrasse o culpado (ou os culpados) a qualquer custo. Seu governo estava ficando mal perante os outros interventores estaduais e perante o próprio presidente da República, Getúlio Vargas. Assim, o violento e sádico Vilanova deflagrou uma terrível cruzada contra pessoas pobres e sem instrução que eram submetidas às mais diversas formas de tortura.

Cerca de duzentas pessoas foram inquiridas na Delegacia de Segurança e Ordem Pública, das quais trinta e sete foram presas e maltratadas. Os homens do povo viram-se, de uma hora para outra, espancados e enterrados vivos num festim diabólico de torturas inimagináveis sob o comando de Evilásio Vilanova.

As torturas ocorriam geralmente na Ilhotas, Campo de Aviação, Tabuleta e na Cruz do Cossaco, monumento existente na estrada para Monsenhor Gil, naquela época totalmente desabitados. Pelo menos um dos torturados não resistiu: o operário Manoel Gomes Feitosa, morto em 1943. As ocorrências chegaram aos ouvidos do governador. Leônidas, então, chamou o diretor do Hospital Getúlio Vargas, doutor Agenor Barbosa de Almeida, e o também médico Antenor Neiva, e solicitou que eles fizessem uma investigação junto aos presos.

“Recebi denúncias de maus tratos contra os presos”, justificou Leônidas. “Preciso que investiguem a veracidade e me façam um relatório detalhado da situação.”

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Albino Gomes de Alencar era proprietário da Casa Tamoio. Comerciante popular, de estatura elevada e muito bonito, fazia críticas ao Estado Novo, ao interventor Leônidas Melo e ao chefe de polícia Evilásio Vilanova. Especula-se que ele e Vilanova disputavam os amores de uma mulher estabelecida na casa de Rosa Banco, à rua Paissandu. Daí a grande rivalidade entre ambos. Não houve comprovação para tal fato.

Albino Alencar foi preso e torturado. Foi levado para lugar ermo e enterrado vivo até a altura do pescoço. Era espancado por Vilanova e seus homens que ordenavam para ele a todo instante que deveria acusar o médico José Cândido Ferraz. Alencar se manteve firme e não acusou ninguém, quanto mais o seu amigo.

Permaneceu sob tratamento psicológico durante muitos anos depois do fim do regime ditatorial. Nos anos 1950 foi eleito por duas vezes para a Câmara Municipal. Exerceu mandatos entre 1º de feverereiro e 6 de junho de 1955. Em seguida, de 6 de junho de 1955 até 31 de janeiro de 1959.

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Os médicos encontraram muita gente trancafiada e espancada. No relato ao interventor, Vilanova é enfocado como violento e sádico. Informam, ainda, que Manoel Feitosa tinha lesões graves no corpo, contusões e marcas de chibata. “Parece que houve ruptura intestinal”, escreveram. “O homem está com o abdome muito grande; devido a essa pancadaria, houve alguma lesão intestinal.” Manoel Gomes Feitosa não tardou a morrer. O chefe de polícia o enterrou sem fazer exame de corpo de delito ou autópsia.

Agenor Barbosa de Almeida era major médico da Polícia Militar do Estado formado pela Universidade do Rio de Janeiro. Foi depois presidente do Instituto de Assistência Hospitalar do Piauí, secretário-geral do Estado, deputado estadual nos períodos de 1947 a 1951 e de 1951 a 1955, primeiro vice-presidente da Assembléia, governador em exercício do Estado no período de 4/3/1952 a 11/3/1952 e prefeito de Teresina no quadriênio 31/1/1955 a 31/1/1959.

"Muitas denúncias chegaram ao conhecimento do governador, de que o comandante da polícia estava maltratando os presos para fazê-los confessar participação nos incêndios ou então apontar a responsabilidade de quem possivelmente havia mandado. Ele então me procurou e me deu carta branca para eu investigar. Eu disse para ele que não queria ir sozinho, porque senão seria a minha palavra contra a do Evilásio, que era uma pessoa muito perversa, muito já se falava sobre o seu sadismo", relata Agenor, em Teresina, seis décadas depois.

"Pedi para ser acompanhado de um médico de minha confiança, o doutor Antenor Neiva. O que vimos nas dependências do Quartel da Polícia foi deprimente sob todos os aspectos. Havia muita gente espancada, brutalizada mesmo, como se estivéssemos numa zona de guerra. Então nos defrontamos com o caso daquele operário, Manuel Feitosa, se me parece, que estava muito ruim, morre, não morre. Eu fiz um relatório, assinamos juntos, eu e doutor Antenor, e apresentamos ao governador. Eu lembro que disse para ele na hora da apresentação: este preso aqui, o Manuel, não tarda a morrer. E assim aconteceu. O homem estava todo quebrado e cortado por dentro, moído de tanta pancada."

Agenor Almeida afirma que comprovou o sadismo de Vilanova. "Para além do que se comentava nas ruas, nos bares, em todo lugar, eu tive a oportunidade de ver de perto, de conferir a extensão de sua crueldade. Aqueles presos, naquelas condições, dezenas e dezenas deles. Contusões, marcas de chibata, o que morreu estava com o intestino rompido. Infelizmente, não tivemos autorização para examinar o cadáver, porque o Vilanova mandou enterrar ele sem fazer exame de corpo de delito."

O governador não teve coragem para desafiar a autoridade de Evilásio Vilanova, que prosseguiu com as torturas. Ele queria a qualquer custo incriminar José Cândido Ferraz e usava, como artifício, o fato de que Ferraz, sempre que acontecia algum incêndio, era um dos primeiros a chegar, muitas vezes antes da própria polícia. Originário de família rica, tinha seu próprio carro, um dos poucos veículos de passeio de propriedade particular da época. Boêmio e conquistador, logo se desentenderia com o capitão Evilásio. Há informações de que eles teriam divergido por causa de uma mulher cujo nome até hoje não foi revelado. Tornaram-se inimigos pessoais.

"Diga que foi o doutor José Cândido, diga senão te (sic) mato!" - afirmava, durante os cruentos interrogatórios.

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O médico José Cândido Ferraz, elegante e milionário, foi eleito inimigo número um do Estado Novo no Piauí. Ele era procedente de família tradicional e abastada e por isso tinha total independência para criticar. Também não podia ser atacado por motivo banal como a divergência política, algo bastante comum naqueles tempos, embora a maioria das pessoas optasse pelo silêncio. Ele acusava abertamente os desmandos praticados por Leônidas Melo e Evilásio Vilanova e logo desenvolveu a ideia firme de que os incêndios estavam sendo praticados pela ditadura com a finalidade de promover uma "limpeza" na área urbana da capital.

Leônidas e Evilásio não tinham condições de alcançá-lo em virtude da grande fortuna e tradição de sua família. Sua mãe, dona Elmira Nogueira Ferraz, era venerada pela população teresinense, especialmente os pobres, a quem assistia da melhor maneira possível. Era tido como a "santinha dos pobres" porque em sua vistosa residência nunca faltava um prato de sopa quente para os famintos ou cobertores e peças de roupas para os descamisados. Diz-se que sua bondade chegava ao ponto de oferecer abrigo para os que tinham suas casas queimadas.

José Cândido nasceu em Teresina em 21 de outubro de 1915, filho de Antonio Leôncio Burlamaqui e da já mencionada Elmira Nogueira Ferraz. Era afilhado de Dom Severino Vieira de Melo, primeiro arcebispo de Teresina e formou-se em medicina pela Faculdade da Bahia, com especialização em radiologia e tisiologia. Na época dos incêndios mantinha conceituado centro de atendimento médico em parceria com Dr. Raimundo Mendes na capital.

Em função de suas críticas ao Estado Novo passou a ser perseguido pelo comandante da polícia, coronel Evilásio Gonçalves Vilanova, que buscava a todo instante uma situação em que pudesse prejudicá-lo. Nos bastidores, comenta-se que os dois também disputavam os amores de uma mulher de vida fácil, mas esses comentários eram bastante comuns em Teresina naquela época quando se tratava de intrigar homens públicos. sempre que havia adversidade entre eles se dizia que havia mulher envolvida. Mas tal nunca ficou provado.

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Os cidadãos eram impedidos, por lei, de comentar sobre assuntos que viessem a causar danos à reputação das autoridades. No dia 16 de agosto de 1943, segundo nos conta o professor e historiador Francisco Alcides do Nascimento, foi publicado no Diário Oficial do Estado um aviso advertindo a população em geral que, em conformidade com o Decreto Lei nº 4.766, de 1º de outubro do ano anterior, não se podia fazer comentários desrespeitosos ou divulgar por escrito qualquer impressão sobre autoridade policial. Os infratores se sujeitavam à pena de um a seis anos de reclusão.

Por causa disso, a população criou um código para tratar dos incêndios, que eram chamados de "aquele negócio" ou "chuva". Os diálogos, de um para outro, transcorriam da seguinte maneira: "Hoje 'aquele negócio' vai acontecer..." Ou então: "Hoje vai chover."

A pressão política contrária era cada vez mais ampla à medida em que aumentava o peso da palmatória oficial, o que terminava induzindo também a uma pressão social, mesmo que tímida por temerária. Uma lavadeira da residência oficial implorou ao governador por providências sobre denúncias de espancamentos contra um familiar dela. Leônidas prometeu que mandaria apurar.

Diante dos rumores insistentes, de que tomava conhecimento por meio de espiões infiltrados em meio ao povo, Vilanova mandou publicar uma notícia nos seguintes termos: "A Chefia de Polícia adverte que os cidadãos de boa fé desta terra não devem dar qualquer repercussão aos boatos tendenciosos que visam comprometer a credibilidade da autoridade policial e espalhar o pânico entre os nossos concidadãos. Estes maledicents estão apenas fazendo o jogo dos inimigos do nosso país."

Enquanto isso, as prisões ilegais e torturas prosseguem. Na segunda quinzena de agosto de 1943 foi detido um homem chamado Luís Alves de Sousa, sob acusação de ser incendiário. Ele foi conduzido à delegacia de polícia pelo tenente Ivan Tito e guarda civil Antonio Lopes. O tempo todo clamava inocência, de que não tinha nada a ver com toda aquela infâmcia. De nada adiantaram seus clamores.

À noite, bem perto da madrugada, naquela hora em que todos (ou quase todos) dormem, foi conduzido para o local conhecido como Cruz do Cossaco, distante duas léguas da área urbana, e ali espancado de todas as maneiras. O festim diabólico era comandado por Vilanova e pelo capitão Arlindo Batista. Após sofrer intenso castigo, a vítima ouviu do coronel as seguintes palavras: "Meu filho, diga logo que foi o José Cândido que mandou..." De outra vez, colocaram-no diante de um retrato de José Cândido e indagaram dele, entre socos e chutes: "É este o homem? Diga que é este o homem..." Luís permanecia em silêncio sobre a inquirição e apenas dizia ser inocente.

Um artigo de autoria desconhecida publicado pelo jornal "A Libertação" fez amplo relato sobre o caso dos supliciados de Vilanova. O coronel afirmava sempre, em sua defesa, estar sendo alvo de perseguição dos inimigos da nação, que eram os opositores políticos do regime, e entendia isso como uma organização "sinistra".

Em pouco tempo foram presos outros elementos que a polícia apontou como responsáveis por incêndios. Eram eles Luís Eduardo, João Paulo da Silva, o "João Sátiro", Lídio Rodrigues de Sousa e Manoel Pereira da Silva. Eles foram acusados de incendiar pelo menos quinze casas nos bairros Piçarra e Monte Castelo. Foram detidos, ainda, Manuel Gomes Feitosa (que terminou sucumbindo fatalmente aos maus tratos), Sebastião Hilário da Silva, Elias de Sousa, Francisco de Sousa Barros, Antonio Gomes Teixeira, Possidônio Pereira Damasceno e Pedro Pompeu Nogueira.

A violência empregada fez com que um dos presos acusasse José Cândido Ferraz, que passou algum tempo preso, mas que seria solto por força de hábeas corpus. O então ministro da Justiça Marcondes Filho mandou um delegado especial chamado Benedito Lopes, do Rio de Janeiro, para intervir na polícia do Piauí e apurar as denúncias. Em seu relatório, datado de setembro de 1943, contudo, Lopes apóia os métodos do chefe de polícia local. O ato irritou o major Adovaldo Figueiredo de Sousa, então comandante do 25º Batalhão de Caçadores.

"Esse delegado agiu de forma parcial. Ele está conivente com a situação. Tenho como provar que ele forjou o depoimento de uma testemunha para beneficiar Evilásio Vilanova, que não passa de um torturador."

No Estado Novo, os métodos de tortura eram arrancar unhas com alicates, enfiar alfinetes sob as unhas, espancar prisioneiros, queimar testículos com uso de maçaricos, extrair dentes com alicantes, introduzir arames nos ouvidos e enterrar vivo.

Transformado em crime político, o caso dos incêndios passou para a jurisdição do Tribunal de Segurança Nacional, através do qual se teve acesso à informação sobre a morte de Manoel Gomes Feitosa. Outras mortes, inúmeras outras, devem ter ocorrido. Mas a imprensa da época estava amordaçada. Os intelectuais, por sua vez, estavam amedrontados. A produção literária da época não trata dos incêndios. O jornalista Antônio Lemos, que chegou a publicar dois periódicos - “O Libertador” e “A Gazeta” - e que tinha redação e oficina à rua Paissandu n° 58 foi duramente perseguido pela censura oficial. Um dos mais rígidos censores era o desembargador Cromwell Barbosa de Carvalho. Não havia, dentro do Estado, como burlar a vigilância da ditadura. Por isso, as torturas só foram documentadas na instância jurídica superior. Em depoimento, o professor José Camilo da Silveira, então presidente do Rotary Clube e vice-presidente da Associação Comercial, relatou:

“A pressão exercida pelas autoridades policiais excedeu a expectativa pública. As torturas continuam. Próximo de minha propriedade, no lugar São Raimundo, a oito quilômetros da cidade, tomei conhecimento por meio dos meus agregados que quase todas as noites suspeitos são levados para lá, presos e surrados, sendo que se ouvem os gritos de: “Acudam, não me matem!” e outras exclamações.”

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